sábado, 5 de julho de 2008

A JUSTIÇA E O DIREITO



A propósito de uma notícia publicada no Jornal público de ontem, dia 04 de Julho, e também em editorial de José Manuel Fernandes, acerca da pobreza ser declarada, pela Assembleia da República, como uma violação dos direitos humanos e sancionar quem propiciar a sua existência ou criação, o deputado socialista Rogério Rodrigues, membro da Comissão Parlamentar de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, afirmou o seguinte: “No campo teórico, todo o direito violado é passível de sanção”.
Como escrevia o director do jornal, “As boas intenções são muito perigosas em política, e mais perigosa ainda é a ideia de que tudo é responsabilidade de quem é governo. Mas, apesar de a experiência nos ter mostrado que o Estado deve limitar a sua intervenção à criação de condições para que todos tenham uma oportunidade e um mínimo de segurança, devendo abster-se de maiores interferências no destino dos indivíduos, a verdade é que ainda continua a ser popular a ideia de um Estado –e um Governo- omnipotente e omnisciente (...)”.
Como se sabe, ao longo da época moderna, e após a separação de poderes instituída pelo espírito da Revolução Francesa (1789) e implementada plenamente em 1814, foi sempre uma tentação dos executivos, mesmo em regimes ditos democráticos, nos nossos dias, controlarem os outros dois poderes. Lembro que a “separação de poderes” consiste numa doutrina formulada pela primeira vez por Locke e desenvolvida por Montesquieu, no seu tratado o “Espírito das Leis” que defende uma separação funcional, como fórmula de racionalização e delimitação de cada um da trilogia em causa, em que no Estado existem três poderes, embora inter-dependentes no espectro estadual, mas independentes entre si: o Legislativo, o Executivo e o Judicial.
A tentação de usar o direito em proveito próprio, para fins políticos pouco claros tem sido uma constante. E não se pense que este aproveitamento é só noutros países. Nada disso. Depois do 25 de Abril, aqui, em Portugal, também, às claras, e feito de forma legal. Embora a lei deva ser abstracta e geral, quando o legislador é o próprio governo (através de Decreto-Lei ou Portaria) ou mesmo a Assembleia da República, quando se tratam de leis votadas por maioria simples, havendo maioria absoluta do governo, é evidente que a lei passa a ser um instrumento do poder executivo. Só não é quando se tratam de leis reforçadas, em que na sua votação, é obrigatória uma maioria de dois terços dos deputados.
Então, obrigatoriamente, somos levados a pensar que se o Direito é um instrumento do poder executivo, afinal o que seremos nós, cidadãos, no meio disto tudo, sobretudo quando se fala numa crise de justiça? Provavelmente o seu objecto, quanto ao seu fim direccionado e pretendido, mas também um objecto, enquanto marionete, programada para dançar ao som de quem põe a música.
Porque, naturalmente se o direito, sendo a possibilidade de execução, a Constituição, de uma justiça, que, socialmente, é entendida como a virtude das virtudes, cujo fundamento é não prejudicar ninguém –nem beneficiar, só se a lei o conceber através de discriminação positiva-, ora, sendo a lei manipulada para interesses inconfessáveis, é lógico que a justiça, irmã siamesa da verdade, sai denegrida e fere de morte os seu princípios de proporcionalidade e de igualdade. É certo que pode haver justiça sem direito (caso da acção directa ou nas sociedades tribais) e haver direito e não haver justiça (caso dos tribunais Plenários no Estado Novo), mas o direito, apesar disso, continua a ser para a justiça o seu húmus agregador.
Voltando à frase do Deputado Rogério Rodrigues, em que afirma que “no campo teórico, todo o direito violado é passível de sanção”, teoricamente sim, como diz. Quando o Estado quer intervir, duma forma discricionária, na esfera pessoal dos cidadãos –como escrevia José Manuel Fernandes-, criando obsessivamente leis e mais leis, aumentando até ao infinito uma panóplia de direitos, leva a que, na prática, poucos sejam respeitados. E, para o ser, só se for através do recurso aos tribunais, vindo a aumentar, para além da conflitualidade, a congestão daqueles órgãos judiciais. Como não há respostas em tempo útil, naturalmente que a justiça sai empobrecida e cai em descrédito. De que vale um direito se não for reconhecido? Nada, evidentemente!
Por outro lado, pelo recurso às multas pecuniárias, em detrimento de sanções acessórias em forma de coerção, poderemos ser tentados a pensar que a justiça, hoje, é um negócio chorudo, de muitos milhões, para o Estado. Se repararmos as penas cumpridas em liberdade serão muito mais do que as cumpridas em reclusão. Então, no limite, poderemos intuir que a justiça está imbuída de um esvaziamento coercivo total que, inevitavelmente leva ao seu desrespeito completo. Já pouco importa -neste caso, o crime compensa- o ralhete do homem de beca preta, representante do povo, da moral e dos bons costumes.
Não se deveria apostar fortemente na educação a partir do berço?
Ainda, continuando a especular, penso que fará algum sentido atentarmos nas penas de prisão efectivas, se por um lado, ficam sempre aquém da proporcionalidade do dano causado? Por outro, não deveríamos reflectir se a privação de liberdade dos nossos dias terá alguma coisa a ver com o passado? Por força dos direitos humanos, as celas são arejadas e limpas, existe televisão colectiva e direito a encontros passionais. Ressalvo que não defendo o contrário, apenas o constato.
E porque o refiro, perguntará? É que tenho um amigo, subchefe de esquadra, em Coimbra, que já por duas vezes foi confrontado com a solicitação de prisão. Na última vez, há pouco tempo, na impossibilidade de cumprir o desejo do indivíduo, este agarrou num paralelepípedo e estilhaçou o vidro de um carro da PSP, ou seja, danificou um bem do Estado, e, nesse caso, perante o facto atentatório, foi mesmo preso.

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