segunda-feira, 26 de maio de 2008

HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA: UMA VOZ DO OUTRO MUNDO (2)




               

 Por volta de 1962, na minha aldeia profundamente rural, entre a Mealhada e o Luso, exceptuando uns poucos habitantes que trabalhavam, como operários, em duas fábricas de barro no cimo da povoação, quase toda a gente vivia da agricultura. A maioria, como os meus pais, eram muito pobres. Quase todos alternavam entre trabalhar a dias para os quatro maiores agricultores do lugar e uma agricultura de subsistência que lhes permitia uma alimentação mínima durante todo o ano. Eram tempos difíceis e, neste contexto, era costume um agricultor, trabalhando para outrem, mesmo em trabalho duro, como por exemplo a cavar vinha, com a terra completamente árida e seca, alimentar-se ao almoço com uma sopa, habitualmente frugal, uma cebola com sal, cortada em quatro, metade de uma broa, cozida no forno a lenha pela mulher do dono da casa e vinho, muito vinho. Daí o aforismo de que numa casa portuguesa havia sempre pão e vinho sobre a mesa. Verdadeiramente, pão só se comia ao Domingo, dia em que vinha o padeiro à aldeia. O peixe, a sardinha, o bacalhau e o carapau (o chicharro) ocupavam, quase em exclusivo as ceias da aldeia, já mergulhadas há muito no breu da noite e à luz de um candeeiro a petróleo, porque não havia electricidade.
  A ceia era a única refeição do dia em que se comia melhor. A carne que por ali se consumia era apenas, e enquanto durasse, a do porco morto uma vez por ano. A carne do suíno era guardada numa grande arca, chamada de salgadeira, onde o principal conservante era o sal. Salvo erro, na aldeia não existia um único frigorífico. De repente podemos pensar que se não havia electricidade, naturalmente não haveria nenhum congelador, mas não era assim. Nesse tempo já haviam frigoríficos a petróleo para conservar os alimentos, mas poucas famílias poderiam adquirir este bem, hoje considerado essencial a qualquer lar dos nossos dias.
  Logicamente, pela necessidade, uma vez que todas as famílias matavam o seu suídeo, havia na aldeia um matador de porcos, o Daniel “Catrixo”. Com cerca de quase meia centena de anos de idade, apesar de ser uma pessoa baixa, era muito forte, de possantes braços curtos e de voz gutural. Era um homem tão forte, lembro-me, que, sozinho, pegava num corpulento animal, levantava-lhe a cabeça, e, numa frieza impressionante, zás!, espetava-lhe a faca na goela. Mesmo no estertor do animal, em que este se torna muito violento, este homem conseguia segurá-lo sem ajudas de ninguém. Era garboso e gostava de mostrar a sua descomunal força hercúlea.
  Um dia, não se soube bem porquê –pensou-se que talvez por zanga ou atritos com a esposa- o Daniel, matador de porcos, ingeriu sulfato e morreu. Curiosamente, menos de um mês depois, a mulher veio a falecer também no meio de um brutal incêndio na sua casa.
  Numa ponta da aldeia morava uma septuagenária velhinha, a senhora Iria. Era muito magrinha, de ar débil e fina voz. Quando caminhava tremia como cana no canavial em dia de grande vento suão.
  Passados poucos dias de ter falecido o matador de porcos, e cerca das 21 horas, a velhinha entrava em êxtase, e, em espasmos, começava a falar com a voz gutural e rugosa do Daniel “Catrixo”. Era tomada de uma extraordinária força, sendo preciso quatro homens para a segurar. Dois nos membros superiores e dois nos membros inferiores. Por mais expensas que a família da senhora Iria desenvolvesse, a “coisa”, a alma do outro mundo, não descolava da anciã. O “encosto”, como força demoníaca, tinha tomado as poucas forças da idosa e frágil mulher. Chamaram uma “mulher de fora”, uma bruxa como sói dizer-se, chamaram o senhor vigário para lhe fazer um exorcismo, mas o “espírito incarnado” não se ia.
  Uma das frases proferidas pela anciã, com o timbre de voz cavernosa do matador de porcos –lembro-me bem- era: “chamem o Manel Morin, que eu roubei-lhe um pinheiro na Gândara, e não saio daqui enquanto ele não me perdoar”.
Enquanto aquele agricultor não foi ao casebre da velha senhora e ali lhe perdoou, a possessão não desapareceu.
 Custa a acreditar não custa? Admito que sim! Mas eu, com cerca de 6 anos de idade, presenciei tudo isto. Essa foi a minha primeira experiência na área da Parapsicologia, uma manifestação de que não “estaremos sós”, e, que embora agnóstico, me levou a levar um pouco mais a sério, ainda que céptico, as teorias espíritas de Allain Kardec, pseudónimo do estudioso da doutrina espírita Hippólyte Léon Denizard Rivail.
                                                                                    

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