sexta-feira, 30 de maio de 2008

HISTÓRIAS DA MINHA ALDEIA: O CASTELO DOS MEUS SONHOS (6)


(FACHADA PRINCIPAL DO CASTELO -aquele poste é de péssimo gosto? Também acho)


(ATALAIAS, PORTÃO PRINCIPAL E ESCADA DE ACESSO À TORRE PRINCIPAL)


(TORRE PRINCIPAL)

                 

   Embora o IGESPAR refira haver 22 castelos e fortalezas em Portugal, pelo menos como a história deste que vou contar, creio, pouquíssimas aldeias de Portugal podem gabar-se de deter um monumento como este e como “ex libris” –logótipo, marca, brasão que indica propriedade, ou representação simbólica que marca um lugar.
Barrô, a minha aldeia, entre a Mealhada e o Luso, orgulhosamente tem o seu castelo de lendas de encantar. Estou certo que, a nível nacional, muitas pessoas não sabem da existência deste ícone de construção aparentemente medieval, mas edificado por altura da 1ª Grande Guerra. Por outro lado, os habitantes desta povoação rural nunca lhe deram a importância que lhe é devida. Tenho a certeza que se contarão pelos dedos das mãos as pessoas que saberão a história que esteve na origem da construção deste presumível refúgio de um amor ilícito, para resguardo da dama, contra falatórios indevidos, e invasores de um amor impossível. Pouquíssimas pessoas saberão que esta interessante jóia arquitectónica resultou do reconhecimento de uma história de amor. E quem foi o apaixonado, perguntará o leitor? Calma! Posso dizer-lhe apenas que foi o maior comerciante do país no século XIX e até quase meados de XX. Foi, sem dúvida nenhuma, o grande precursor dos modernos centros comerciais. “Nasceu em 1853, em Aveiras de Cima, no Concelho da Azambuja. Filho de médico, foi para Lisboa trabalhar no comércio ainda muito jovem. De marçano, na Rua dos Fanqueiros, estabelece-se por conta própria aos 27 anos na Rua da Prata. A loja chamava-se Fazendas Baratas, onde aplicou o preço fixo e fazia propaganda comercial” –in blogue “Indústrias Culturais”. Então quem era este grande comerciante e industrial, quem era? Calma! Primeiro vou referir a fonte que me permitiu saber a origem do “castelo dos meus sonhos”: Agostinho Fernandes, morador em Coimbra, natural de Barrô, com uma sensibilidade acima do comum, é um interessado pela história da região, nomeadamente tudo o que diga respeito à nossa aldeia e ao Luso. Apaixonado pela arte, pela cultura em geral, erudita ou popular, e tudo o que lembre as nossas origens e reminiscências. Sem a informação importantíssima do Agostinho eu jamais teria sabido que aquele extraordinário edificado fora fruto de uma paixão. Presumivelmente um acto de amor de um lisboeta por uma bela mulher da nossa aldeia, de Barrô.
 Este castelo, em forma de fortificação, a lembrar os “castros” da Idade Média, foi erigido sobre uma base de pedra ou pedreira, na saída leste ou levante, em direcção ao Luso, numa elevação, em posição dominante, sobre a paisagem em redor e junto a uma via de comunicação. Exactamente, obedecendo aos mesmos critérios arquitectónicos de construção medieva, do mesmo tipo do castelo de Almourol, com a sua torre cimeira a dominar, com frestas em forma de seteiras, um edifício central, mesmo no cimo do monte pedrado. Ao lado, lembro-me de uma bomba de extracção com um grande aro em ferro para retirar a água do poço. Por baixo, um pouco ao lado, uma longa galeria, ou cisterna, talvez a lembrar as catacumbas ou prisões de antanho. Toda a área envolvente é murada com ameias, onde não falta a atalaia, ou espaço de aviso. A escada de acesso à propriedade e ao ponto mais elevado começa com um grande portão em ferro forjado. Desde a abertura desta portada até ao edifício central era, nos anos de 1960, no meu tempo de criança, constituída por cerca de sete dezenas de degraus talhados na própria pedra rochosa e avermelhada, acompanhados ao longo da subida por grandes estatuetas de cimento e de forma humana. O terreno, dentro do muro ameado, era constituído por imensas árvores de fruto, entre figueiras, cerejeiras e nespereiras.
 Passando ao lado do portão de ferro, ao longo do caminho de terra batida, havia um grande tanque cheio de água para todos os animais que passassem poderem saciar a sede, e que provinha de um tubo a meio sempre com um fio de água a correr. Do lado direito, um grande portão verde de madeira, constituído por várias folhas, levemente oval e a terminar em bico, a imitar as construções moçárabes, resguardava, na garagem, um ou vários automóveis de luxo para a época. Relembro um Citroen preto, de jantes pintadas a branco, vulgarmente conhecido por “arrastadeira”.
  Guardo na memória de, em criança, apenas ter entrado uma vez neste castelo que fazia parte da minha imaginação e fantasia. Subi aquela longa escadaria e parei, sem entrar, junto à torre altaneira, no hall do salão principal. Fiquei extasiado, fascinado com uma enorme panóplia cheia de espadas antigas cruzadas. Engraçado como retenho essa imagem ainda hoje. Desci e entrei apenas na galeria ou cisterna, quase por debaixo do chão, e, dentro dela, imaginei histórias de tesouros, das arábias, das mil e uma noites.
  Vou então desvendar o mistério, a identidade de talvez o maior comerciante do século XIX e princípios de XX, tendo em conta o atraso que o nosso país registava em relação ao restante continente europeu. Tratava-se de Francisco Grandella. Esse, Esse mesmo que o leitor está a pensar: Grandella, o grande homem, o dono dos Grandes Armazéns Grandella em Lisboa, que construiu e abriu ao público em 1894, para fazer frente aos grandes armazéns Printemps de Paris. Foi este visionário que introduziu no país o anúncio comercial, a possibilidade de trocar ou reembolsar o dinheiro caso o cliente não gostasse do produto, a entrega ao domicílio e a publicação de catálogos com as colecções. Em Benfica, Lisboa, Grandella edificou uma vila composta por muitas casas destinadas aos operários.
  Hoje, o castelo que povoou os meus sonhos de menino é, segundo Agostinho Fernandes, propriedade de uma família do Porto, a Melo Adrião, há várias décadas. Durante muitos anos esteve ao abandono e sujeito à decrepitude do tempo. Registe-se, com agrado, a sua recuperação nos últimos tempos por esta família.
  Quanto à identidade da minha conterrânea e sublime paixão do grande comerciante, pouco se sabe. Segundo me afiança a senhora Lucília Dias, a mulher mais idosa da aldeia –ultrapassou há pouco um século de vida, no passado dia 19 de Setembro perfez 102 anos-, chamava-se Aurora. Era natural de Barrô e filha do “Manel”, de apelido o “Riquenho”. Segundo as palavras lúcidas da encantadora centenária, “a Aurora foi muito nova, para Lisboa, trabalhar, como criada doméstica para casa de Francisco Grandella”. Ao que lhe parece, como ela era um “bom bocado e tenrinho” e ele muito mais velho, jarreta e duro, depressa ela subiu na hierarquia e passou a ser “criada para todo o serviço”, ainda que, em certos préstimos, na clandestinidade.
 A senhora Lucília lembra-se muito bem da senhora Aurora. Aquela anciã trabalhou muitos anos na fortaleza como cozinheira. “Parece que a estou a ver”, refere, “usava sempre um grosso cordão de ouro ao pescoço e com um enorme medalhão”. Acrescenta ainda que era criança quando o castelo foi construído, talvez por volta de 1915, mais ou menos. “O meu pai acarretou muita pedra, coitadinho”, refere por entre um suspiro de saudade.
 Apesar de, na altura, ser uma relação moralmente condenável pelos costumes Aurora, a amante do grande empresário, foi muito bem acarinhada na aldeia e lá acabou os seus dias em paz.
                                                                       


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