Quando em 1993 abriram as primeiras grandes superfícies em Coimbra, nomeadamente o Continente e a Makro no Vale das Flores, era então presidente da Câmara Municipal de Coimbra o socialista Manuel Machado.
Por uma questão de franqueza, se, hipoteticamente, fosse à época presidente da edilidade eu teria licenciado estas duas grandes superfícies comerciais –estou a ser coerente, porque exactamente nessa altura escrevi isto mesmo no Diário de Coimbra. E porque licenciaria estas duas grandes superfícies? Perguntará o leitor. Precisamente pelo facto de o nosso comércio ser muito concentrado no Centro Histórico e precisar de um novo motor que servisse para alavancar o seu desenvolvimento. Por outras palavras, do ponto de vista do consumidor, nessa altura, na cidade, para além de ser tudo muito igual e numa mimética repetida, os preços eram muito caros.
Ora, no meu entender, uma vez que o presidente da edilidade terá sempre de harmonizar os interesses dos consumidores e dos operadores económicos, fazia sentido, embora com algum cuidado, abrir a concorrência –evidentemente sem esquecer que são estes últimos que são o sustentáculo da criação de emprego. É também sabido que os actores económicos se dividem em micros, pequenos, médios e grandes empresas. E qualquer um destes grupos são importantes na economia –sabes-se que o micro, pequeno e médio ocupam na Europa cerca de 92 por cento do universo total-, mesmo até as micro-empresas porque normalmente são familiares, ocupam uma fatia importante na ocupação e no rendimento e evitam o desemprego comparticipado pelo Estado.
Voltando a 1993 e a Manuel Machado, o problema é que não houve cuidado e continuou-se a licenciar mais grandes superfícies a esmo, como foi o caso do Dolce Vita. Quando em Dezembro de 2001 Carlos Encarnação ganha a Câmara de Coimbra o processo de licenciamento já estava avançado. Este autarca renegociou-o conforme pode e obteve algumas contrapartidas para a cidade. Como se já não bastasse continuou a autorizar mais grandes áreas comerciais. Foi no seu reinado que abriram portas o Retail-Parque de Eiras e, ao lado, uma média superfície agora da Sonae; o Retail-Parque de Taveiro e o Fórum, no alto de Santa Clara. Como se não chegasse para catástrofe ainda se autorizou no ano passado a deslocalização da Makro do Vale das Flores para a Rua Adriano Lucas e permitindo que outra grande superfície, a Merlin, abrisse no seu anterior lugar. Isto, numa altura em que a procura está esgotada e todo o comércio local se arrasta pela amargura, incluindo mesmo as grandes superfícies. No mínimo esta autorização deve ser considerada um escândalo e um atentado à boa gerência de uma cidade.
Ora o resultado de tudo isto está bem à vista: temos um comércio local a cair aos bocados –já há comerciantes que não compram medicamentos por não terem dinheiro- e as grandes áreas a entaiparem e a baixarem rendas e a fingirem que está tudo bem por lá. E o emprego na cidade ficou melhor? Todos sabemos que não. Estes licenciamentos em barda contribuíram para o empobrecimento de todos, dos consumidores, dos comerciantes tradicionais e das grandes áreas. Então para que serviram? Para destruir toda uma actividade comercial outrora forte e que hoje, na grande maioria, está na miséria, completamente decadente.
E comecei a escrever este texto pela notícia de hoje do Diário de Coimbra: “Antiga Fábrica Ideal será hotel “low cost”. Continuamos a ler e ficamos a saber que a antiga fábrica têxtil irá ser reconvertida num hotel de baixo custo. Para mais, segundo declarações do vereador Paulo Leitão, “a Câmara tem todo o interesse que aquela zona da Baixa, desqualificada, tenha rapidamente outra roupagem”.
Chegados aqui podemos fazer um ponto da situação: a cidade tem 12 hotéis e, entre hospedarias e pensões, cerca de 20 estabelecimentos. Está projectado um novo hotel de charme, com 46 camas, para a Rua Alexandre Herculano.
Antes de prosseguir, gostaria de lembrar que as portarias 517 e 518/2008, de 25 de Junho, através do Decreto-lei 39/2008, veio impor uma série de alterações no sector de dormidas. Entre elas a figura do “Alojamento Local”, que, mediante requerimento dirigido ao presidente da câmara da respectiva área, prevê a possibilidade de transformar qualquer moradia ou apartamento em estabelecimento de alojamento.
Ora, penso, dá para ver que a cidade não terá necessidade de construir mais hotéis, e sobretudo de baixo-custo. Então podemos fazer uma interrogação: o que vale mais? A coisa ou as pessoas? Se é a coisa, recupere-se a zona desqualificada e mande-se para o charco centenas ou milhares de pessoas.
Se der para arrepiar caminho, em vez de passar por cima de tudo, pela relevância de requalificar uma zona, tendo em conta a má experiência do comércio, o executivo autárquico, aparentemente seguindo os anteriores e agindo com sintomas autistas, deveria dar mais atenção a quem há muitos anos está no terreno e luta para ganhar a vida –como é o caso das cerca de 20 pensões, cujas gerências são formadas por unidades familiares. Infelizmente este desligamento pela harmonização e salvaguarda dos interesses de quem está estabelecido é transversal ao país. Há um ano atrás o DN focava o caso da Baixa do Porto, em que os “hotéis nascem como cogumelos” –era o título.
Quando será que os munícipes de Coimbra começarão a olhar para o seu executivo camarário e verão neste elenco não um abcesso, um corpo estranho na cidade, um quase inimigo das suas gentes, que apenas quer obras e mais obras, mas um amigo, uma força que, antes de licenciar seja lá o que for, dialoga com os representantes da classe em causa? Será que não vêem que estas atitudes continuadas são uma subserviência ao capital que vem de fora? Em nome do dinheiro e do pseudo-desenvolvimento vale tudo? Pelos vistos a experiência falhada do comércio de rua não valeu nada. O que é que falta para provar que este modelo económico seguido está errado? Querem o quê? Fomentar a revolta com atentados brutais para mostrar a razão? Suicídios de operadores? Tenham bom senso, senhores! Já é tempo!
2 comentários:
A Baixa vive de facto uma situação dramática e precisamos de encontrar soluções. Feitos os estragos - como os que refere - não é fácil. Julgo que se tem que olhar para 2-3 eixos, destacando a construção de percursos que tornem a Baixa mais do que um entreposto comercial de circulação difícil. Preonizo a construção de 2 pontes pedonais entre a zona da Baixa e a zona do Estádio Universitário, a construção de algumas residências universitárias e habitação jovem na Baixa, e a organização do estacionamento na envolvente. E mais umas coisas (para uma conversa)!!! Helena Freitas
A guerra entre comércio local/tradicional e as grandes superfícies é transversal, na minha cidade passa-se o mesmo. Não há bom senso, há apenas interesse e influência esquecendo-se as pessoas da terra que durante séculos deram vida à baixa. Agora Coimbra tem prédios degradados e ruas abandonadas. Estou 100% de acordo com o projecto de recuperação das fachadas dos prédios - e que bonitos são! - e com a ocupação destes por alunos estrangeiros, mas tudo isto são projectos de remendo. Há que pensar de raiz.
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