sexta-feira, 21 de setembro de 2007

A INSUSTENTÁVEL LEVEZA DE SER COMERCIANTE

(FOTO DE BRAGA PINHEIRO)


 Anastácio tem 55 anos; alto, de olhar baço, ofuscado, sem brilho, esquálido, de um macilento escanzelado que faz impressão –no último ano perdeu 15 quilos. Este homem, outrora garboso, é hoje uma sombra errante, de uma imagem perdida, que o espelho guarda na memória mas que não voltará a reflectir.
Anastácio é comerciante na Baixa de Coimbra. Numa daquelas ruas estreitas por onde passaram, Camões, Eça, António Nobre e tantos outros poetas anónimos, cujos desabafos literários não passaram de uma gaveta de madeira carcomida pelo tempo. Aquele homem, se o vendassem, seria capaz de descrever cada edifício, cada recanto, cada ruela, e até cada pedrinha da calçada. Pelo cheiros e pelo ruídos, à força de uma rotina continuada, conseguiria identificar qualquer largo mais recôndito. Este é o universo deste homem, a sua alma, a sua força anímica, um amor sentimental, sem explicação racional, que só quem ama entende, só quem quer bem, consegue explicar.
Anastácio começou a trabalhar no comércio de rua, mal terminou a então escola primária. Corria o ano de 1962, lembra-se, foi o ano em que os Beatles lançaram o seu primeiro trabalho discográfico: “Please, Please me”. Como se, hipoteticamente ou não, fosse uma chamada de atenção para ele, a verdade é que ele pouco ligou à profética frase, até porque tinha absoluta necessidade de trabalhar.
Em 1977, ano do maior acidente aéreo da história -583 pessoas mortas, envolvendo os aviões da Pan Am e KLM, em Tenerife, nas Ilhas Canárias- premonitoriamente ou não, ele não sabe, a verdade é que mudou para um novo patrão. O comércio, dito agora tradicional, corria veloz como navio de velas desfraldadas, tocado por ventos de feição, saídos da Revolução de Abril. Tudo se vendia, o preço pouco importava. Entrava-se na obsessão materialista, onde o que contava era o ter e o parecer, em detrimento do ser. Poucos ou nenhuns adivinhariam que décadas mais tarde, para curar esta dependência obsessiva, numa catarse, em psicanálise continuada, o país, psicologicamente, entraria em crise profunda. E, naturalmente, Anastácio, que não é presciente, legitimamente, sonhava em ser dono do seu destino, queria ser comerciante. Ser dono do seu espaço e aplicar o seu empírico conhecimento em proveito de si próprio.
Em 1996, toma de arrendamento, em cessão de exploração, a loja onde trabalhava. Começou a pagar 400contos, hoje 2000euros. Até 2002 tudo correu sobre rodas, como quem diz , a coluna do “Haver” era superior à do “Deve”.
Dois anos depois da passagem do milénio, a partir do “discurso da tanga”, a coluna do “Deve” entra em vermelho-rubro acelerado. Fala com o seu antigo patrão, tentando sensibilizá-lo para o declive económico que se inicia, para que este abaixe a renda. Ele até é um bom católico, vai todos os domingos à missa, e, afinal de contas, ele nem despendeu nenhuma verba com indemnização de duas décadas de trabalho dedicado. Além de mais, já recebeu em 10 anos qualquer coisa como 50mil contos de rendas. Mas, o homem, bom católico-praticante, não foi sensível. Religião, religião, negócios à parte. Dos três funcionários existentes, faz acordos indemnizatórios com dois e fica apenas com uma empregada. É impossível recuar mais. Os fornecedores começam a fazer marcação cerrada. Há três anos, Anastácio recorre à banca e contrai um empréstimo de 100mil euros e hipoteca a sua casa, fruto de trinta anos de trabalho. Paga aos fornecedores e novamente o “caixa” fica insolvente.
Hoje, têm vários meses de rendas em atraso e não paga os impostos há mais de um ano. O seu dia-a-dia, no seu estabelecimento, é passado em constante sobressalto. Sempre que entra uma cara estranha ele pensa: “é agora! É este que me vai fechar a loja…é das Finanças, de certeza”. Com a espada de Dâmocles suspensa sobre a sua cabeça, sente-se encurralado, não tem para onde fugir. Já não dorme mais de duas horas por noite, e, isto, se tomar, o “Xanax” diário.
Anastácio não sabe o que fazer quanto ao futuro. Com 55 anos é demasiado novo para a reforma e velho de mais para aceder a um emprego. Apesar de descontar 24,5%, mensalmente, para a Segurança Social e a sua empregada 10%, esta vai ter direito a subsídio de desemprego, ele não. Sim, sublinho, ele não terá direito a subsídio de desemprego. Porquê? Perguntarão? Eu respondo por ele: porque as associações de Comerciantes do país, em vez de se preocuparem com a sobrevivência futura dos seus associados, solicitando a inconstitucionalidade sucessiva da norma que exclui os comerciantes do acesso a uma pensão minimamente digna de sobrevivência, continuam, politicamente, a apregoarem a revitalização comercial, como se fossem ouvidos por alguém. Deveriam ter vergonha do mau serviço que prestam aos comerciantes. Estão à espera de quê para o fazer? Estarão à espera que Anastácio mande um tiro na cabeça e, amanhã, seja, pela primeira vez, título de caixa-alta de um qualquer jornal? Endemicamente, muito mal vai um país que maltrata assim os seus filhos.


(HISTÓRIA VERÍDICA)

2 comentários:

albertina disse...

Pois,
A quem escreveu sobre o Sr Anastacio, ou mesmo sobre o Sr anastácio, isto é uma selva, nunca esperemos que os outros tenham pena de nós, por conseguinte não tenhamos pena deles.
O Sr anastácio de facto sabia tudo de cor se fechasse os olhos, mas na verdade deveria ter tirado tudo do lugar para outros poderem também procurar.
Quanto ao tal subsidio, isto não se aplica só aos comerciantes, aplica-se a todos os empresários, e vá-se lá saber porquê? (é obvio)
Quanto à casa que hipotecou, foi pena, regra nº 1 nunca misturar as àguas, isto é muito mau, mas a vida ensina-nos como devemos agir...
Porque ninguém tem pena de ninguém...

Ismaria disse...

Anastácio,é apenas um dos muitos portugueses,que está a "pagar"por muitos erros cometidos politicamente no nosso país.Quantos Anastácios por este país já não desistiram???Para onde caminhamos?????Parabéns,escreves muito bem.Isabel