sexta-feira, 14 de setembro de 2007

SAUDADE...

Ela vinha vestida de negro. De passo ondulante, entrou no café e todos os homens presentes levantaram os olhos, como se, o seu andar flutuante e libidinoso, de pé-ante-pé, fosse um ambulante rasgado apelo aos sentidos masculinos.
Porque nos conhecemos, quando me viu, poisou em mim os seus belos olhos castanhos rasgados e veio ter comigo à mesa. No meio de tantos olhares masculinos senti-me um eleito. Um porta-aviões que recebe o protótipo sulcador dos ares e admirado por todos. Conheço esta mulher há uns 3 anos. A Lena tem 45 anos, marcados no calendário do tempo, mas quem olhar para ela não lhe dará mais de 40. Intelectualmente não é muito esperta, meio dividida entre o conhecimento adquirido ao longo da vida, a revista Maria e umas fugazes leituras no jornal diário da cidade. Mas, a verdade, é que às vezes surpreende-me com frases tiradas do fundo de uma alma que parece não ser a sua. A natureza foi pródiga com esta desejada viçosa mulher. Um metro e setenta e poucos, uma cara redonda, cabelos pretos, cor de azeviche, compridos muito bem distribuídos num corpo de ninfa; provavelmente, se vivesse no tempo de Rafael (1483-1520) teria sido, pela certa, um dos modelos que teria posado para uma das suas três graças.
Eu sabia que o seu actual companheiro e último, desde há cerca de dois anos estava muito doente. Ao vê-la de luto, intuí imediatamente o que tinha acontecido. Mesmo assim, arrisquei uma pergunta de resposta conhecida antecipadamente:
-Porque andas de luto Lena? –interroguei, tentando disfarçar a minha intuição presciente.
-Então não sabes?!...O meu António partiu há duas semanas. Deixou-me. Eu sei que está bem! Respondeu, ensimesmada, dividida entre a interrogação e a constatação.
-Os meus pêsames, Lena. Ainda tão novo: tinha há volta de 55 anos, não era? Mas que se há-de fazer? Todos iremos um dia. Afinal a vida é apenas as férias da morte. É bom que todos aproveitemos bem estas “vacances”. Podem acabar a qualquer momento.
Como sabes que está bem? -olho para ela com ar de redobrada admiração.
-Olha, há dias estava a dormir no sofá e, em sonho, vi-o na ombreira da porta da sala. Sorria para mim tranquilamente. O seu rosto estava envolto numa forte luz. Os seus olhos, que conheci tão bem, pareciam de porcelana, brilhavam muito. Todo o seu corpo estava envolto numa luz amarela, parecia os faróis de um carro. Pela forma embevecida como olhava para mim, sei que está bem. No dia da missa do sétimo dia eu “senti” que ele estava ali. Foi uma missa tão linda…
-Vocês eram muito amigos não eram? –interpelei.
-Nós éramos muito mais do que tudo o que se possa imaginar. Ele era o meu companheiro das horas vazias, aquele que estava sempre presente. Era o amante certo, nas horas incertas, sem nunca o ser em tempo algum. –Novamente a Lena pareceu cair numa divagação etérea.
-Explica isso, Lena, “o amante certo, nas horas incertas, sem nunca o ser”? –Interpelei.
-Sim! Sabes que ele tinha um “pacemaker”, de modo que o médico, logo que nos juntámos, avisou que ele não poderia fazer amor comigo. Se o fizesse, poder-se-ia ficar a qualquer momento. E, fogo, já viste, o risco que ele corria? E até para mim, se me acontecesse tal coisa…era um trauma para toda a vida, um homem exalar o último suspiro em cima de mim? Por isso nunca arrisquei a vida dele. Mas também não fez falta nenhuma –soletrou, com aquele seu ar de menina.
O que contava era o seu telefonema a meio da manhã: “então como está o meu anjo?”.
Era o chegar à noite, depois do trabalho, e ter o jantar feito. O que contava eram as suas carícias, embevecidas, nos meus cabelos e no rosto, acompanhadas de palavras embrulhadas em mel:”adoro-te meu amor. És a mulher da minha vida…casa comigo Lena". As saudades que tenho de acordar com ele abraçado ao meu pescoço.
Como hei-de curar esta saudade?...As saudades que tenho dele…-estas palavras foram interrompidas por um desbragado mar de lágrimas…

(HISTÓRIA VERÍDICA)

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