Como o tempo voa, já estamos em Setembro, parece que ainda ontem foi o Natal. Daqui a dias vamos ter aí o Outono, com todas as folhas secas a esvoaçarem ao vento. As pessoas voltaram quase todas de férias. Como não tenho nada para fazer, vagueio lentamente por estas ruas estreitas da cidade velha de Aeminium. Vou observando os rostos, todos de tez morena, vê-se bem que passaram uns diazitos na praia. Observo cada um e vejo alguma serenidade, como se cada cara transportasse uma contemplação etérea. Não vejo sorrisos rasgados. Daqueles sorrisos que nos prendem, que apetece roubá-los e torná-los nossos. E tanto faz que seja uma pessoa nova ou mais idosa. Não importa que seja muito gorda ou um manequim, ali o que importa é aquele sorriso, parecido com a imanência brilhante saída de um Cristo apaziguador desenhado nos velhos catecismos do Estado Novo.
Lembrei-me disto, não porque tivesse visto hoje um destes sorrisos, antes pelo contrário, porque vi ali um rosto que –meu Deus- parecia carregar toda a infelicidade do mundo. Quase senti vontade de me meter com a mulher e perguntar-lhe se podia ajudar nalguma coisa. Palavra de honra. Era impressionante. A senhora deveria ter há volta de 45 anos. Quase que, olhando aquela solidão extremosa, aposto que foi maltratada ou foi preterida em relação a algum irmão, na infância pelos pais. Esta mulher deveria ter nascido no princípio da década de sessenta. Os primogenitores das décadas de 50 e 60, provavelmente, nunca tomarão consciência do quanto foram responsáveis pela infelicidade que estas gerações carregam no rosto e sentem no dia-a-dia. Sabemos que os seus actos anti-educacionais foram herdados dos seus pais; eles também filhos de um deus menor resultado de tempos de fome e, sobretudo de carência de afectividade – vale a pena estudar rostos, através de fotografias, de finais do século XIX e princípios do último. Neles é comum apercebermo-nos de semblantes hirtos, fechados e tristes. Também eles resultados de uma educação pretoriana, assente no mais profundo autoritarismo patriarcal ou matriarcal. Para eles a criança nascia livre até ao momento em que exalava o primeiro grito. Mesmo este, quantas vezes, já era resultado de uma redundante bofetada no rabo. A partir daí, estas crianças seriam moldadas à força de pancada e de mãos agressivas, em vez de servirem para afagarem e darem amor. Entendia-se que, embora a criança nascesse livre, era através de uma educação austera que ela seria moldada opressivamente, à custa de muita violência física e verbal, para se inserir nos costumes e respeito valorativo da sociedade destas épocas. Não eram questões novas, elas foram trazidas para a luz filosófica através de Hobbes e Rosseau, nos finais do século XVIII e introduzidas no espírito da Revolução Francesa de 1789. Um defendia que o homem nascia livre e era a sociedade que o conspurcava, tornando-o mau, insensível e moldado no sistema. Outro defendia o contrário: que o homem nascia selvagem, sem sensibilidade; amoral e que seria a sociedade, através de uma educação indutiva, que o levaria a alcançar a perfeição e a reintroduzi-lo em normas societárias convencionadas.
Bolas! No meio das minhas conjecturas filosóficas, até me esqueci que ia beber um café com o Almerindo Abrolhos ao Café Santa Cruz. Já vos falei dele não já? Acho que sim. Eu não faço outra vida. Creio que toda a gente o conhece. Não paro de falar dele. Adoro este homem pela sua originalidade. Que querem? Desculpem, sei que deveria ser mais contido. È um tipo bacano. Não acreditam? Ai não?! Então espreitem, vejam daqui: é aquele personagem pessoano que está ali sentado na esplanada. Reparem naquele porte e classe. Aqueles gestos cuidados, quase como se estivesse sempre a representar. Vejam como se apresenta: calça vincada, pólo Lacoste e pullover sobre as costas atado no pescoço. Vejam bem o penteado: cabelo negro todo penteado para trás, ao estilo de Errol Flynn. Só lhe falta o bigodinho. Sempre bem perfumado. É um gosto estar com ele. Vou falar-lhe.
-Boa tarde, Abrolhos, há quanto tempo?! ...Dá cá um abraço. Por onde tens andado que já não converso contigo há uma semana? –amando-me, para cima dele, com os meu braços abertos e aperto-o contra mim.
- Ó “meu” que é isto? Já te disse que não gosto dessa tua forma de me abraçares. “tas-te” a passar ó quê?. Será que não vês que podes pôr em rico a minha reputação? Eu sou muito homem, ouviste “meu”? Que mania! Ó “meu” apertas-me a mão e chega . –irrompe o Almerindo, bastante irritado. Bolas tenho mesmo de ser mais comedido.
-Ok! Ó pá desculpa, não voltará acontecer. Não sabia que tinhas complexos desses. Está bem! Vamos mas é ao que interessa. Que novidades me contas? Queres falar de educação? -Interroguei o Almerindo porque ele está a ler o jornal “Público” e tem plasmado na primeira página que cerca de 45 mil professores não foram colocados.
-Ó “meu” eu falo do que quiseres. Sabes bem que para conversar estou por aqui. Eu sei tudo o que se passa aqui à volta e tenho uma cultura acima da média. -responde o Abrolhos, fingindo uma grande modéstia, vocábulo que ele nem conhecerá, tal é o estado normal do seu ego.
-Ó pá, claro que sei. Por isso gosto de conversar contigo. Tu és um poço de cultura. –penso para mim que às vezes apetece-me mandar o Abrolhos para o outro lado. Chego a irritar-me com tanta prosápia. Mas, como não me posso enervar com ele, mentalmente exclamo: está bem…abelha!
-Ah …assim está bem! Isso é outra conversa. Falemos de educação. Puxa aí “meu”…
-Ó pá estava a ler esse título dos professores no jornal. Hoje deve ser muito difícil ensinar. Com a falta de autoridade que os professores têm na sala de aula. Já viste que desde o 25 de Abril tem-se vindo a assistir a um crescendo de desautorização contínua, a um esvaziamento de poder formativo necessário e hierárquico na sociedade? Como por exemplo, os professores, os polícias, os juízes e até os próprios pais? Verifica que estes nem uma palmadinha no momento certo a podem dar. Se o menino se queixa ao SOS criança, temos aí um grande problema. Parece quase que houve uma intencionalidade de transmutar todo o poder –tornando-o vazio e balofo- concentrando-o na classe dirigente política e económica de topo? Interrogo, com ar de grande cultura.
-Ó “meu”, vamos esclarecer uma coisa: a autoridade conquista-se, não se impõe. Ou seja, ela tem de sair de dentro para fora e nunca de fora para dentro. Toda a autoridade imposta, mais tarde ou mais cedo ruirá. Porém, depois desta ressalva, tenho de dizer-te que concordo contigo. –responde-me o Almerindo com o habitual espírito de frade conventual.
-Concordas comigo? Ó pá estou admirado, o que é que vai sair daí? -levanto queixo e fixo os olhos no Abrolhos.
- Ó “meu”, passámos do oito para o oitenta. Enquanto no passado era tudo à força de cinto, hoje é tudo à força de beijinhos e abraços e mais prendinhas para o menino e para a menina que os paizinhos têm de os compensar de alguma forma pela falta de tempo que têm para lhes dispensar. Então enchem-nos de bens materiais. Os criadores de falsas necessidades agradecem. Depois lá estão os professores para aturarem os monstroszinhos. –Refere o Almerindo com grande solenidade e começando a levantar-se.
-Ó pá, tem calma! Já vais? –interrogo.
-Olha “meu” desculpa lá, mas vi ali passar o professor do meu neto, e tenho umas coisas para lhe dizer, não pense ele que o miúdo lá por não ter o pai presente –que é um gandulo!- que lhe pode puxar as orelhas à vontade ou pô-lo a varrer o pátio da escola. Isso é que era bom!
Como sempre, fiquei sem palavras. A (in)coerência deste homem deixa-me sempre a pensar.
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