“O homem deveria ter há volta de 30 anos, de passo decidido, dirigiu-se-me. Com voz grave e bem timbrada, exclamou: “senhor agente, eu roubei um telemóvel na rua ali ao lado e já o vendi a um fulano, que lhe darei a sua identificação. Quero que o senhor faça a participação e respectivo auto…”
Eu sou polícia de segurança pública (PSP) e estava de serviço nesta noite. Tenho 48 anos e mais de vinte como cívico. Ao longo destas mais de duas décadas de serviço, nunca ninguém me pediu para ser privado da liberdade. Como é de calcular, já vi de tudo, já passei por tudo. Já andei nas brigadas à civil, e isso marca um homem para a vida toda. Ver miúdos no “cavalo” e na “branquinha”, a ejectarem-se num qualquer recanto obscuro ou casa abandonada. Alguém sabe o que isso custa? Pensam que por trás deste rosto aparentemente duro, não está um homem, com todas as suas fragilidades e vulnerabilidades? Acho giro a populaça, em refrão, cantarolar que um homem nunca chora. Nunca chora, como? Só não chora quem é insensível. Só as pedras não choram…porque são insensíveis? Claro que não, não choram porque não têm coração. Pelo silogismo, a meu ver, quem possuir essa máquina pulsante de amor, quer seja animal racional ou irracional, inevitavelmente chora. Os primeiros poderão expressar a dor em lágrimas, os segundos em sofrimento, que os primeiros ainda não identificaram os sinais exteriores.
Por aqui, já vêem como sou. Ora, perante este estranho pedido, evidentemente que senti um baque no coração. O que pode levar um rapaz de cerca de 30 anos, na flor da idade, a, voluntariamente auto-acusar-se e a pedir para ir “lá para dentro”? Lentamente, enquanto ia pegando na folha de participação e na caneta, ia fazendo um exercício de análise introspectiva e de dúvida metódica. Eu conhecia-o, ele estava referenciado nos cadastros da minha Esquadra. Há cerca de cinco anos, ajudei, conjuntamente com os meus camaradas, a prendê-lo, por estar envolvido em vários assaltos a casas comerciais, com recurso a violência. Mais tarde, como testemunha, estive no seu julgamento e soube que, depois da tremenda admoestação do juiz, apesar da sua dureza verbal, este fora complacente, tendo em conta a sua pouca idade, e sentenciara-o em 8 anos de cadeia efectiva. Tivera também em conta o facto de estar sozinho no mundo, não ter pai, mãe ou namorada. Ora, assim sendo, ele saíra há pouco em liberdade condicional.
Seria o facto de estar sozinho? Pensando bem, realmente, hoje, estar preso nem é muito mau. Ter comidinha, dormida e roupa lavada gratuitamente até é bom. As instalações são boas, televisão…hum…só pode ser isso! Para se gozar a liberdade muito tem de se transpirar de suor e de muita inspiração para ver como esticar um ordenado –quem o tiver- até ao fim do mês. Seria esse o propósito que o levou a, intencionalmente, prevaricar e a pretender, com esse acto, quase de forma provocatória, a criar um motivo para o prendermos outra vez? Saberá ele que, nestes cinco anos passados, tudo mudou, na área jurídica do direito penal? Saberá ele que, com a entrada em vigor das novas alterações ao Código Penal, quase que temos de pedir permissão para deter alguém? E, valerá isso de alguma coisa? Se não for em “flagras” (flagrante) o Juiz liberta-o imediatamente. Então, alguém entende que isto é profundamente desmotivador? Por um lado o cidadão exige mais segurança, -e é legítimo que o faça, a segurança de pessoas e bens é um direito constitucional -por outro, nós polícias, estamos atados de pés e mãos. É justo interrogar os políticos para onde querem eles levar este barco, que parece navegar à deriva, saberão eles o porto de ancoragem? Penso que não. Há um excessivo respeito pela salvaguarda de direitos, liberdades e garantias do delinquente e um profundíssimo desrespeito pelo acto lesivo causado e respeitante à vítima.
Mas o cidadão também é muito injusto. Quando precisa de nós lança-se completamente nos nossos braços, entregando a alma e o corpo. Quando não precisa, nós somos os verdugos, a máquina repressiva do sistema, vejam, por exemplo, aquele vídeo editado no You Tube, respeitante a uma agressão perpetrada no Parque das Nações contra um salteador, que, no mesmo dia, tinha feito vários assaltos. Foi excessiva a carga policial? No limite até podia ter sido. Mas não podemos esquecer que se tratava de um meliante que tinha causado vários prejuízos patrimoniais a vários cidadãos. Mas eu até entendo, as pessoas reagem emotivamente, na maioria dos casos, sem pensarem nos antecedentes. Reflexivamente, colocam-se sempre do lado do mais fraco, mesmo que essa aparente vulnerabilidade seja causadora de muita infelicidade.
Bom, mas com estes pensamentos, quase que me esqueci do rapaz. Vou fazer a participação… para nada. Mas tenho de cumprir e cumprirei…"
(HISTÓRIA VERÍDICA NO TOCANTE AO ACTO PARTICIPATIVO)
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