terça-feira, 9 de outubro de 2007

A CARTA BENFEITORA DE GARCIA

Afonso Garcia é um simpático velhote de 91 anos. Mora em Coimbra. Ágil no andar e mais lesto no pensar, este médico-poeta, naturalmente utópico,de uma sensibilidade à flor da pele, uma versão de João semana –até porque conviveu e conheceu muito bem Fernando Namora- tem uma história de vida que se perde nas linhas do fantástico. Ouvi-lo é um gosto. Quando começa, o difícil é parar, e nós, quem o escuta, enleados, a reviver com ele o seu extenso rol de acontecimentos, perdemos a noção de tempo, enquanto contado num qualquer relógio.
Licenciou-se, conta, em Julho de 1945. Estava a 2ª Guerra a terminar no seu armistício, assinado em 2 de Setembro. Poucos anos depois de ter acabado o curso, por volta de 1947, foi colocado em Évora Monte, freguesia do concelho de Estremoz. Esta linda terra alentejana, foi sede do concelho até ao século XIX. Teve foral em 1248. Em 1801 tinha 2 661 habitantes. Em 1849 tinha 3030. Actualmente, tem 724 habitantes (último censo de 2001). Aqui se assinou, em 26 de Maio de 1834 a Convenção de Évora Monte, que pôs termo à guerra civil de 1832-34, travada entre absolutistas e liberais.
Já casado, nos primeiros tempos, deixa a mulher em Coimbra e parte rumo aos confins do mundo, que nesse tempo as distâncias não eram medidas pelos quilómetros percorridos, mas pelas dificuldades em aceder a um determinado lugar de Portugal, com caminhos de picada, em terra batida e com imensos buracos. Basta lembrar que os 17 quilómetros que distavam de Évora Monte A Estremoz eram percorridos em 2 horas e 30 minutos, de carro. Era um caminho picado e sulcado por imensas crateras. Andava 100 metros, aparecia um grande buraco, tinha de se fazer marcha-atrás para o poder contornar. Não haviam nem estradas nem camionetas.
Com o seu Vauxhall usado, oferecido pelo sogro, depois de um dia de viagem, chega então a Évora Monte. Corria então o ano de 1947, esta terra, que se viria a tornar tão querida para Garcia, nesta altura do pós-guerra, era paupérrima do ponto de vista maioritariamente social. Todas aquelas imensas terras, a desaparecerem no horizonte, eram propriedade de meia dúzia de abastados proprietários latifundiários. Garcia lembra-se de alguns nomes. Eram o Fernandes, mais conhecido por menino d’oiro, o José Castelo Branco, o inglês Reynolds e do homem mais rico de toda aquela pradaria: o senhor Coelho. Lembra-se de muitos bons amigos; do presidente da Junta, o Isidoro Chia e do talhante, que esqueceu o nome, mas não olvidou da memória, por ser um bom amigo e dono do único açougue daquela terra abandonada por Deus e pelos homens que comandavam os destinos de Portugal, nomeadamente, Salazar e Óscar Carmona.
Sendo médico, depressa constatou que aqui o que soçobrava era a miséria e a carência de tudo. Não havia posto médico e os próprios instrumentos médicos eram dele. Foi viver para uma casa cedida por aquele que viria a ser o seu grande amigo, Isidoro Chia, o Presidente da Junta. Era aí que dava as consultas. Sim, “dava”, porque praticamente eram dadas. Exceptuando os proprietários abastados, as pessoas não tinham dinheiro. Nem sequer para os medicamentos. Garcia ganhava 5 contos por mês. Como cedo se apercebesse que as pessoas não aviavam os medicamentos, na única farmácia da terra, por falta de liquidez, fez um contrato com o farmacêutico: este serviria os medicamentos aos doentes e, no fim do mês, este médico acertaria contas. Porém, uma cláusula obrigatória: ninguém deveria saber quem era o benemérito. Houve meses que o seu ordenado mensal não chegava para pagar os medicamentos. Algumas vezes teve de transitar, em débito, para o mês seguinte. Mas toda a gente passou a ter aceso a medicamentos.
As consultas eram pagas em géneros. Os mais pobres davam se podiam. Os mais abastados pagavam obrigatoriamente, pela Páscoa e pelo natal, com cabritos, vitelos e porcos. O único modo que Garcia vislumbrou para fazer algum dinheiro foi fazer um contrato com o talhante da terra: ele aceitaria os animais, matá-los-ia, e depois venderia a carne e só então, depois, pagaria ao médico o resultado da venda.
Era uma pobreza impressionante. Este médico lembra-se de fazer imensos serviços de obstetrícia no domicílio das parturientes. Quando era chamado, lá carregava ele a mala com os seus bisturis e fórceps. Era médico para todas as doenças: ginecologia, oftalmologia, obstetrícia, cirurgião e clínica geral.
As crianças andavam quase todas descalças e expostas às intempéries do tempo.
A qualquer simples dádiva faziam fila e esperavam longas horas expostas ao frio ou ao calor. Garcia recorda o latifundiário inglês Reynolds: todos os meses, num determinado dia, em hora imprecisa, passava no seu Rolls-Royce. Quando circulava na praça principal, afrouxava e atirava montes de rebuçados aos miúdos da terra. Os putos, sabendo o dia, chegavam a estar na praça, em magotes, horas a fio à espera do abastado agrário.
Das poucas que iam à escola, muitas delas percorrendo cerca de 15 quilómetros para cada lado, de casa ao estabelecimento de ensino, era comum este médico notar que a maioria levava, como alimentação, para todo o dia, uma fatia de pão, meia-dúzia de azeitonas e um marmelo assado. Este pequeno-almoço “alancharado” era comido debaixo de uma qualquer árvore, fizesse sol ou chuva.
Então uma ideia começou a germinar na cabeça deste clínico: iria fundar uma cantina. Falou com o seu amigo Isidoro Chia, presidente da Junta e este logo abraçou a ideia. Cedeu-lhe imediatamente um pardieiro abandonado. Em seguida, escreveu uma carta ao Ministério da Instrução a solicitar uma verba para iniciar o processo de fundação da cantina…que lhe veio negado. Mas não cruzou os braços. Falou com os grandes e abastados agricultores e estes comprometeram-se a abastecerem a cantina com sacos e sacos de arroz, batatas e carne para todo o mês. O latifundiário Fernandes, o menino d’oiro, de dois em dois meses, entregava um envelope com 5 contos de reis, para as despesas correntes da cantina, como por exemplo, pagar à única funcionária, a cozinheira, que ganhava muito pouco, cerca de 100 escudos por mês, diz Garcia, a propósito. O restante serviço era feito pelos professores e voluntários. Os panelões para cozinhar, na cantina foram oferecidos por um oficial do exército. O mais forreta de todos os latifundiários, curiosamente era o mais rico do grupo de beneméritos: o senhor Coelho. Não tinha filhos. Quando morreu deixou uma fortuna e um imbróglio jurídico in testato aos seus sobrinhos.
Lutando contra ventos e marés, Garcia abriu a cantina com 25 alunos a tomarem o pequeno-almoço e a almoçarem. Chegando mais tarde a ter 120 crianças. Aos mais necessitados continuava a dar alimentação mesmo durante as férias. Todos os aniversários de qualquer criança eram comemorados nas cantinas.
Fundou uma biblioteca pública com centenas de títulos doados, em que as crianças e adultos podiam levar para casa os livros. Aquando da devolução do livro, a pessoa, criança ou adulto, era interrogada, para saber quantas pessoas na sua casa, em serão, assistiram à leitura do livro.
Garcia, durante os 10 anos que permaneceu em Évora Monte, ainda fundou e orientou um rancho folclórico, que viria a ganhar um 1º prémio entre grupos concorrentes. O orientador musical era o senhor Cardoso.
Ao fim de 10 anos transferiu-se, de armas e bagagens para Avis, onde permaneceu até poucos meses antes do 25 de Abril de 1974.
Hoje, mora e vive em Coimbra, onde, com uma agilidade de cinquentão, percorre as ruas estreitas da Baixinha e, quando pode, troca umas impressões com o autor destas linhas, a quem foi cedendo parte da sua história, contada por ele próprio e, sem possibilidades de investigação probatória pelo segundo. Se você, que teve paciência de Jó, chegou até aqui e é da zona de Évora Monte, se souber alguma coisa que possa corroborar esta história, escreva aqui o seu testemunho de conhecimento.

1 comentário:

Anónimo disse...

"Conheci um desconhecido"

Depois de alguns dias de chuva, acordei num dia solarengo, e resolvi ir tomar café á minha esplanada preferida, onde o astro-rei sol e a brisa do vento se dissolvem com um aroma de bem-estar e paixão! A tomar o meu café, ouço da mesa seguinte, um desconhecido dizer: " gosto deste sítio. Esta esplanada agrada-me", e com um sorriso,meu pensamento responde a mim mesmo, "pois a mim também me agrada" e não sei se por um acto de magia, esse desconhecido olhou para trás e diz, "nós conhecemo-nos?" " respondo eu que não, e depois de essa primeira impressão a conversa desencadeia-se como se alguém que eu já conhecia a uma eternidade! Alguém essa que tinha na sua expressão, no seu olhar a sede de toda a sabedoria e simplicidade do mundo, alguém que gosta de viver, alguém que gosta de aprender com as coisas mais banais e simples da vida, alguém que me diz que é um modesto jardineiro, quando na cara dele esta escrito que é medico... alguém que eu adorei conhecer, alguém que me fez bem e de um saco preto, retirou a minha for preferida, uma Rosa de Santa Teresinha, (como quem tira o coelho da cartola), ofereceu-me um postal da Rainha Santa Isabel, que eu tanto admiro, como se bem me conhece-se.... Falou-me de animais, pássaros, gatos e flores.... e por fim pediu-me para escrever sobre um "desconhecido que conheci"!!! Foi um daqueles momentos mágicos efémeros, mas que quero voltar a repetir, pois este grande senhor, é de se lhe tirar o chapéu fazer uma vénia, e agradecer a sua existência, porque se todo o mundo soube-se dessa magia, viveríamos certamente no paraíso.