quinta-feira, 21 de julho de 2022

ALVOROÇO NO BECO DA PAROLEIRA

 





Diariamente, mal o Sol avermelhado cor de fogo cai a pique no horizonte longínquo, por volta das 9 badaladas - equivalentes a 21h00 -, o Beco da Paroleira entra num silêncio profundo e envolvente. Depois deste horário, podem ser trazidos gostosos e apetitosos pratos pantagruélicos que ninguém move uma palha. Pode até haver dança do ventre ou, sei lá, “strip tease” que ninguém levanta uma pálpebra. A partir do momento em que a noite entra com o seu breu abrangente, pequenitos, crescidos e mais velhos, todos fazem pacto de remanso.

Nesta betesga o dia de trabalho começa cedo. Mal o relógio da torre sineira da capela da aldeia dá o toque de levantamento, às seis horas da matina, logo o Acácio, o renegado, dá em cantar desalmadamente para acordar todos os que respiram na estreita viela. Não se sabe se o faz por vingança e ressentimento, se por serviço público. O “renegado” dorme sozinho há muitas noites, tantas que já lhe perdeu a conta. Tudo começou quando o malandro, em manifesta violação moral, se começou a pôr nas irmãs. Expressamente para o efeito, foi convocado um conselho familiar para analisar as medidas a tomar perante o comportamento desviante do alegado pedófilo. Foi dada a possibilidade de defesa ao acusado. Bem tentou o malvado invocar que era simplesmente assédio, mas o veredicto do plenário foi implacável: expulsão imediata do seio familiar.

O arvorado macho-latino, que não controla as hormonas, não se deu por achado e rapidamente tentou integrar-se nas famílias vizinhas. Não contava com os tempos que vivemos onde o rumorejar se transforma em seta olímpica que atravessa o mundo quanto mais numa ruela. Resultado, foi imediatamente colocado de lado pelas várias proles e a sofrer de perseguição e “bulling”. Mal ele se aproxima para consumir uma côdea ou uma espiga de milho, ou de uma dama sozinha, que até parece pavonear-se em posses provocativas, como tocasse a rebate, ouve-se o tamborilar de alerta do José Fanha, o general-em-chefe da guarda pretoriana, e, numa louca correria histérica e colectiva, afastam o condenado das meninas virgens e inocentes. Ali não há pão para malucos, parecem dar a entender.

Coitadinho, o Acácio, condenado e muito bem condenado, até merece pena; de olhar triste, amargurado, mal-arranjado nas vestes, parece que perdeu a alma.


II


Mas hoje, estranhamente, passaram as nove horas, já o manto da noite escura tomava conta do Beco da Paroleira, e os representantes mais velhos das famílias estavam todos espertos e despertos. Até o Acácio, sempre longe da possibilidade de socializar, embora afastado, não fosse o diabo tecê-las, estava vigilante e atento ao que se iria mostrar.

Talvez o caso não fosse para menos, iria passar na televisão SIC uma entrevista à família de Famalicão que tudo tem tentado para obstaculizar que dois dos seus filhos frequentem as aulas de cidadania, disciplina obrigatória para a passagem de ano subsequente. Assim que acabou a reportagem do canal privado, estalou a discórdia entre os assistentes.

A primeira a pedir a palavra foi a menina Etelvina, mãe solteira, desempregada, com vários bebés a aconchegar: “eu quero que os meus filhos tenham uma boa formação na escola pública. Eu vou educá-los da mesma forma que a minha mãezinha, que Deus a guarde lá em cima, no Céu, me educou a mim. Os pais educam e a escola forma. Eu não tenho medo da influência manipulatória do Estado na formação dos meus pequenos…

Atalhou a Efigénia, matriarca de seis herdeiros já entradotes: “ó filha, isso são questões para gente brasonada e rica debater. Eu não tenho medo de discutir a orientação de género dos meus filhos. Como sabem o meu mais velho, o Horácio, é homossexual. E isso importa-me para alguma coisa? Eu quero é que todos sejam felizes…

Retorquiu a Maria Papoila, carpideira de muita lágrima mal derramada, avó e mãe de muitas parideiras: “é o medo, querida! É o medo que os faz agir assim. Será que em vez de rapazes fossem meninas a celeuma se levantava?

Fossem eles pobres como nós e veriam vossemecês se a atoarda se levantava. Era o levantas!

Foi então que o José Fanha, o galo mais importante da capoeira, discorreu em corte: “Não estava em discussão a criação de um Serviço Nacional de Saúde para todos os animais?


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