sexta-feira, 19 de novembro de 2021

ENCERROU MAIS UMA LOJA NA MINHA RUA

 



Se as ruas chorassem, com certeza absoluta, esta minha artéria,

deixando cair em cascata como finos cabelos dourados

emergentes dos edifícios laterais, depositaria no chão mil

e uma lágrimas de angústia e depressão.”


Fechou hoje mais uma loja na minha rua. Durante os últimos três anos fez-nos companhia, na fase dita normal (AC, Antes do Covid), e depois, nesta considerada anormal (DC, Depois do Covid).

Como outra também encerrada há cerca de um mês, vai transferir o seu comércio para outra parte da cidade. Dá para perceber que a minha alameda, como ancião esclerosado, velho e cansado, perdeu o interesse dos mais novos. Sim, pode ser isso! Afinal, na idade cronológica, esta passagem que atravessa a baixa da cidade tem já centenas de anos a levar com os pés de milhares e milhares de transeuntes, assim, como assim dizer. Mas, atenção, em sua defesa, sempre vou aventando que já foi uma das mais, senão mais importantes de todas. Relembro, com saudade, a sua época áurea, nos anos de 1980/1990, em que como mulher bela, todos queriam fazer parte do seu colo. Se nos últimos séculos foi sempre muito respeitada, e até baptizada várias vezes com nomes diferentes, nos últimos vinte anos, com negócios sempre a abrir e a fechar, foi sendo desprezada por todos. Num calculismo individualista voraz, todos nós, os que ficam tentando resistir e os que partem constrangidos, sem dar nada em troca, esmifrámos, extorquimos, toda a sua riqueza até ao tutano. Nenhum de nós, por imaculado que se faça parecer, é inocente neste enterro anunciado.

Uma vereda, como aia leal que nasceu para servir, nunca se queixa, quer do tratamento social que lhe é concedido, quer pelo total abandono a que é votada. Quantos dramas, quantas histórias de amor foram vividas no seu seio. É a história individual dentro da história colectiva.

As vias de uma urbe, em metáfora, são as artérias de um corpo humano, que, em viagem de ida e volta, transportam o sangue, a vida ao coração. Logo, por inerência, se uma ou mais vias de comunicação fenecem, a cidade, inevitavelmente, mais tarde ou mais cedo, acabará por morrer.

Se as ruas chorassem, com certeza absoluta, esta minha artéria, deixando cair em cascata como finos cabelos dourados emergentes dos edifícios laterais, depositaria no chão mil e uma lágrimas de angústia e depressão.

Voltando à lojista que encerrou, mais uma vez, tal como outras, não se irá despedir de nenhum vizinho; tal como outros comerciantes que partiram por serem obrigados devido à conjuntura económica e ao desleixo político local, esta minha rua passará a ser para eles uma porção de terra amaldiçoada, uma memória traumática para esquecer; um sítio negro onde, ficando parte da alma estilhaçada, não foram felizes. Muitos anos passarão em que não voltarão a pisar este chão, que já foi sagrado e outrora tão desejado, agora indiferente. O curioso, sem graça, é que a culpa, como morresse solteira, cai por inteiro na minha rua.


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