quarta-feira, 11 de setembro de 2019

BAIXA: FALECEU O CEGO EDUARDO






Faleceu Eduardo Ventura das Neves. Durante largas décadas a sua memorável lamúria, tenham dó e caridade de auxiliar o ceguinho, com uma esmola, para quem não vê a luz do dia, senhor”, ecoou e foi a nossa companhia diária na esquina entre o largo da Freiria e frente para as Ruas das Padeiras e Eduardo Coelho.
O Eduardo, com 65 anos, solteiro, vivia em Casalinhos, Soure, em casa dos pais. Homem cioso do que considerava ser seu por direito adquirido, algumas vezes assisti a escaramuças de bengala em riste contra o invasor que pretendia ocupar o seu lugar ganho por força do tempo. Escrevi muitos textos sobre esta figura peculiar da zona histórica. Assim como tantos outros que nos vão deixando.
Para quem vive na Baixa, o Ventura era (mais uma) figura carismática que, pelo seu apelo à moeda, fazia parte da nossa existência diária. Hoje, que partiu para longe, é quase certo que deixa uma sombra de tristeza no coração. Pessoas como o Ventura das Neves, quando estão na sua função, de boa saúde, pelos seus repetidos comportamentos até se tornam aborrecidos, porém, quando desaparecem abruptamente e sem avisar, durante muito tempo no local que se mantiveram, nos meses subsequentes, parecemos ouvir a sua voz provinda dos confins da terra. São assim as figuras típicas da cidade. Chamo-lhes “Rostos Nossos (Des)conhecidos”.
À família enlutada, em nome da Baixa, e mais em particular das Ruas Eduardo Coelho, Padeiras, do Almoxarife e do Largo da Freiria, os nossos sentidos pêsames. Até sempre Eduardo.


UM POEMA ESCRITO PARA O EDUARDO, EM 2008


“Uma moeda, por amor de Deus, senhor”,
repete mil vezes o ceguinho em ladainha,
encostado, sem ver, na esquina da ruinha,
em prece carecente, exaustiva de amor,
aos poucos, sente, vai caindo a moedinha;
Passa a velhinha desafortunada,
sem sorte, cujo marido perdeu,
olha para o cego, que não vê nada,
retira uma moeda, o rosto emudeceu,
pensa em Deus, numa prece sagrada;
Calmamente, passa o comerciante falido e sonhador,
outrora, corredor de fundo, dono da rua,
que Deus lhe pague em dobro, senhor”,
ouve o cego, dá meia-volta e recua,
deposita uma moeda, pensa Nele com fulgor;
Dona Maria, dona de casa, cheia de solidão,
ouve o cego: “ajude, por amor de Deus!”,
abre a carteira, tira uma nota com a mão,
pensa para si: "que o Senhor limpe os pecados meus,
me dê forças e paciência para aturar o meu João
";
Passa um casal de namorados, ele é generoso,
no gesto, mostra à sua cara-metade a sua bondade,
ela, sem dizer, pensa, quanto ele é tolo e vaidoso,
não se impressiona com aquela facilidade,
assim, só lhe mostra o quanto é manhoso;
Pára um político, cumprimenta o cego, faz-se notado,
olha em volta, quer ser visto, pensa no que seria,
se desse uma nota de dez, de vinte, ao pobre coitado,
talvez passasse um jornalista e tirasse fotografia,
no dia seguinte, em “cacha”, “O amigo do necessitado”;
No meio de cegos, o menos invisual é o que não pode ver,
todos precisam da sua cegueira para os fantasmas expiar,
o gesto hipócrita de dar não passa de ambição de receber,
na fé, em promessa a um Deus generoso capaz de multiplicar,
o cego, que não vê, lendo a alma desta gente, parece tudo ver. 

Sem comentários: