EXPOSIÇÃO PRESENTE NO "MUSEU TEMPORÁRIO DE MEMÓRIAS", NA RUA VELHA, UMA PERPENDICULAR À RUA EDUARDO COELHO, COM A COLABORAÇÃO DESTE BLOGUE
TEXTO DE APRESENTAÇÃO
DE “ROSTOS NOSSOS (DES)CONHECIDOS”
Desde 2007, altura da criação do Blogue
Questões Nacionais, que me preocupei sempre em dar voz aos mais humildes,
aqueles que, vestidos de anonimato, com a sua idiossincrasia, calcorreiam as
pedras milenares da Baixa de Coimbra e nunca são motivo de atenção pública, nem
mesmo no último suspiro. Por que todos temos uma narrativa, falo com eles, ouço
os seus lamentos, enalteço as suas virtudes e, romanceando com carinho, conto
as suas histórias de vida. Como a justificar a sua existência silenciosa e
errante entre nós, talvez com a veleidade de servirem como documento de estudo social
comparativo para a posteridade, tento mostrar que são pilares da comunidade
–por que, embora pareça que não, de facto, são mesmo sustentáculos. Ainda que
subtilmente, a sociedade revê-se em figuras que quebram as normas societárias e
alteram as rotinas e, sem dar por isso, acaba a amar os diferentes entre
iguais.
A ideia que subjaz a esta iniciativa com o
título “ROSTOS NOSSOS (DES)CONHECIDOS” é retirar do silêncio da
clandestinidade citadina pessoas que conhecemos a fisionomia mas, para além
disso, nada sabemos delas. Amam, sofrem, têm laços familiares, vivem e
sobrevivem de quê? Dando-lhes visibilidade, poderemos fazer algo por elas?
A pergunta que poderemos fazer é se os vinte
agora sujeitos a escrutínio popular são os mais importantes? De modo nenhum. Uma
selecção implica sempre critérios de subjectividade, o que quer dizer que, no
caso de outro a apurar, poderiam ser novos eleitos para figurarem nesta galeria
de nomeados. De cerca de uma centena de pessoas que na última década passaram
no Centro Histórico e, em sua memória intemporal, presentes no blogue –uns
ainda estão entre nós e outros não-, sem desprimor para os restantes, foi
escolhido este leque de notáveis. Para todos, os que fazem parte e excluídos, o
que nos guia neste trabalho é um profundo respeito pela sua passagem e
agradecimento por nos fazerem companhia.
Embora a última distinção caiba por inteiro à
organização do “Museu Temporário de Memórias”, se posso escrever em nome dos
agora representados em foto e com pequena história resumida, pela oportunidade,
o meu muito obrigado.
António Luís Fernandes Quintans
ROSTOS NOSSOS (DES)CONHECIDOS
Quando se pensa em antiguidades e velharias é
impossível não recordarmos a imagem de Carlos
Manuel Dias. Com o seu inesquecível “Velhustro”
no Largo do Romal desde 1971, Carlos Dias fez parar o relógio do tempo. Nesta
época de correria louca em busca obsessiva de um futuro precoce, obrigou a
olhar o passado, pela memória das coisas, como a invisível super-estrutura
humana. Como arqueólogo recuperador de um passado
assente em sinais marcados, ele vê à distância o que comum não logra a um
palmo. Os objectos, enquanto criação de
arte, elaborada, destinada a uma elite, ou vulgaridade, dirigida às massas, são
extensões de nós. Por discutível que seja, somos um resultado do que temos ou o
que tivemos na vida.
2 - IMAGEM – “CARLITOS PIPI”
Em metáfora, as cidades são grandes jardins
onde convivem harmoniosamente plantas de toda a espécie floral. A marcar a
distinção entre as flores, numa beleza rude e a quebrar o situacionismo
edílico, encontramos a rosa brava. O Carlos Alberto dos Santos Duarte, mais
conhecido por “Carlitos Pipi” é a rosa brava da Baixa de Coimbra. Por ser
diferente da maioria, como se fosse uma criança crescida, é amado e respeitado
por todos e terá para sempre um lugar cativo na história da Lusa Atenas.
3 - IMAGEM – “A ÚLTIMA BOLEIRA”
Até há cerca de dois anos, como relógio suíço
a calendarizar o dia, fizesse chuva no nabal ou Sol na eira, impreterivelmente,
todos os Sábados encontrávamos a Dona Mercês a percorrer as ruelas e becos da
Baixa. À porta dos estabelecimentos comerciais ecoava o seu inconfundível
pregão interrogativo “VAI UM BOLINHO DE
ANÇÃ, MENINOS?”. Amiúde, por parte dos compradores, era abordada com outra
pergunta: “tem cornos, Dona Mercês?”. E
a septuagenária respondia: “já não tenho.
Agora só dos redondos!”. Provavelmente retirada desta estimável venda
ambulante pela elevada idade, a senhora Mercês deixou as ruas do Centro
Histórico de Coimbra mais pobres e solitárias.
Os artistas de rua deveriam estar para os
governos autárquicos como o mar está para o pescador. Tantas vezes destratados
por carregarem o anátema do vadio, não lhes é dado o valor de criadores a que,
legitimamente, têm direito. Cantam, encantam, quebram o bucolismo serôdio dos
transeuntes ensimesmados e animam as ruas da cidade. O João Torres, em representação excelente de classe, é um deles.
Exímio intérprete das baladas de José Afonso, com uma voz potente de tenor, presumivelmente
por não ser suficientemente protegido em Coimbra, debandou e procurou novas
paragens onde fosse mais acarinhado e reconhecido.
5 - IMAGEM – “O HOMEM DA BICICLETA ÀS CORES”
As cidades, na sua diversidade, são uma
extensa galeria de arte vária. A maioria de nós não se apercebe das diferenças
que subsistem entre os seus elementos. Talvez porque, por um lado, estamos
inteiramente afundados nas pessoais preocupações, e, por outro, pela acultura que destrói a sensibilidade
individual. Sem querer, acabamos por olhar para tudo e todos como igual e como fazendo
parte da mesma massificação. Um destes quadros vivos de expressão surrealista é
o Celso Loureiro, o “homem
da bicicleta às cores”. Vindo dos arredores da cidade, durante vários
dias da semana, faz-nos companhia e enriquece o nosso horizonte existencial.
6 – IMAGEM - “O HOMEM DO(A) CAIS”
Por nos cruzarmos diariamente, há pessoas que
mesmo sem as conhecermos, nem nunca termos trocado uma palavra, numa
psicológica proximidade indescritível, acabamos por nos afeiçoar e, sem darmos
conta, fazemos deles apoios existenciais. Aos nossos olhos, num apriorismo
enganador, podem ser donos de uma simpatia invulgar ou o contrário. Quando desaparecem
da nossa vista, sentindo a sua falta, com eles levam um pouco de nós e,
inevitavelmente, surge a culpa de, enquanto nos encontrámos, nunca termos
trocado um “bom dia”. A vender a revista Cais, o italiano Giusepe, mais conhecido por
Pino, é um afectuoso calcorreante das Ruas Visconde da Luz e Ferreira
Borges. Pela sua esmerada educação, humildade e distribuidor de amor ao
próximo, por direito próprio, tem um lugar escrito a fogo na história da Baixa.
7 – IMAGEM - “O POPEYE”
Até há cerca de um ano, com o seu andar
desengonçado, voz esganiçada, roupas coloridas e boné na cabeça, o António Simões da Silva, conhecido por
“Tónio
Bombeiro”, foi presença assídua na Baixa. Para melhorar o seu bem-estar
foi transferido para um lar da Cáritas, ali para os lados Areeiro, e, sem ele o
saber, sentimos a sua falta a marcar a rotina. O “Tónio” é um daqueles figurantes carismáticos que pululavam nesta
zona velha. Pessoas como ele são uma espécie de flores silvestres que nascem e
vivem numa área habitacional. Pela forma desligada, na diferença, em
consequência da sua leve demência imprimem uma marca inconfundível e, talvez
sem o notarem, são profundamente amados pela colectividade. Tal como a imagem
deixa transparecer, todos gostamos muito de ti, António.
8 – IMAGEM – “O VERDADEIRO VENDEDOR DO BORDA D’ÁGUA”
O seu local de trabalho, incluindo escritório,
loja e oficina, é na Rua da Sofia, ao ar livre. Há várias décadas que,
independentemente dos humores de São Pedro, encontramos o Rui Jorge Pereira Almeida ora a plastificar documentos, ora a
vender o “Borda D’água” –o
verdadeiro, como sublinha com ênfase. Tem noção de que a sua profissão está
ameaçada. No tocante aos plastificados, qualquer dia já ninguém passa
cartão a ninguém. No referente à popular cartilha do
agricultor, se, por um lado, agora é tudo científico, em grande escala, e
já ninguém olha para a Lua, por outro, há quem venda gato por lebre, como
quem diz, fotocópias, e rebentam-lhe com o negócio. O Rui é um carismático que,
pela força da razão, ganhou um lugar entre nós.
Encontramo-lo muitas vezes nas ruas da cidade.
Acerca de si, contam-se histórias efabuladas. Dizem que é um homem abastado,
dono de grande riqueza, e senhor de grande saber intelectual. Alheio a isso
tudo, talvez único nesta sociedade egoísta, renegando a materialidade e não
querendo saber da opulência, só o seu coração de ouro parece prevalecer. Por
ventura, contrariando os ventos do ter
em prol do ser, será um eremita moderno que, com inegável
louvor, merece a nossa admiração. Provavelmente sem o saber, causa-nos inveja o
seu desprendimento. Por respeito à sua intrínseca forma de ser não o
identificamos.
A sua pose formal, estudada e retocada em
longas noites de insónia numa modesta casinha de uma rua estreita da Baixa de
Coimbra, poderia dar em caso de estudo. Sem se saber bem onde começa a
realidade e a ficção, a verdade é que Maria
Teresa Pena, a “menina Teresinha” como sempre exigiu ser tratada pelos mais
chegados –que os mais afastados não
merecem confiança-, conquistou um lugar de relevo no quadro histórico da
urbe citadina. Felizmente de boa saúde, está recolhida num lar de repouso para
os lados do Norte do país. Pela sua personalidade vincada, onde a fantasia
marca a intemporalidade da vida, merece um lugar de destaque.
Dando continuação a uma profissão que resta
apenas na memória colectiva, há cerca de cinco anos a vender O Despertar, é
hábito, todas as sextas-feiras, ouvirmos o seu pregão ecoar por entre sombras
de recantos pitorescos da Baixa: “OLHOOOOÓ… DESPERTAR! É P’RÓ MENINO E P’RÁ
MENINA! PRÓ PAI E PARA O AVOZINHO! OLHOOOOÓ… DESPERTAR!”
Victor Manuel Lucas é um “self-made-man”,
um faz tudo. Desde pintar uma tela, concertar um relógio até restaurar um par
de sapatos, o Victor é o paradigma
do português desenrascado, trabalhador nato, e formado na faculdade da vida.
Por ser quem é, merece por inteiro figurar nesta galeria de notáveis.
Durante os últimos anos demos de chofre com
ele a tocar viola acústica e a cantar mornas
na Rua Visconde da Luz. Cabo-verdiano de nascimento, Lourenço Pina escolheu Coimbra como cidade de acolhimento. Homem de
talento, onde a alma resplandece sem filtro, com a sua voz caninha a registar o compasso, por razões que a razão desconhece,
por que nunca lhe foi dada uma oportunidade ou por nunca aproveitar o dom que a
Natureza o bafejou, não atingiu os mínimos de artista consagrado. Durante cerca
de dois anos integrou a desaparecida “Orquestra
de Músicos de Rua de Coimbra”. Pela sua isotérica apresentação e
companheiro da vivência da Baixa, como marca registada, o Pina ficará para sempre na nossa memória citadina.
Caminheiro solitário destas pedras gastas pelo
tempo, Manuel Cadacho é um vigilante do efémero, do nada. Numa imaterialidade,
vazio como alma em busca de um encosto, há no entanto nele algo de tangível que
se adivinha. Um pouco de tudo. Uma projecção de todos nós. Já foi criança, já
foi homem –no sentido da utilidade societária, porque sem préstimo o humano
torna-se coisa-, já foi empregado, já foi patrão, já foi pau-mandado a
troco de qualquer coisa. Já foi significado de respeito. Agora, significante de
sombras, faz que faz apenas para se manter ocupado sem nada fazer. Agora,
normalmente com poiso assente na Praça do Comércio, sem nada pedir, sem nada
fazer, procura um simples sorriso que, para quem nada tem, pode constituir um
dia de felicidade.
Na
Baixa da cidade passamos sem ver por imensos artistas de rua como
ele. O Luís Cortez, em que o talento, como espuma de uma taça de
champanhe, transborda abundantemente e se perde escorrendo em fios de
displicência, é um Intérprete com maíúscula que faz da música o
seu ganha-pão. Sendo invisual, os seus olhos não vêem a luz mas
choram em sombras de silêncio. Mais que certo, lacrimejam com
lágrimas sentidas e derramadas por um coração que sofre pela
exclusão de todos nós. O mais grave é que este ostracismo é
fruto, tantas vezes, de uma insensibilidade mesquinha e falta de
respeito pela arte criativa que se nos apresenta ao ar livre. Em
apriorismo bacoco, dando por acabado que o que é oferecido a troco
de uma simples moeda não presta, fechamos nossos sentidos à
revelação da verdade e fugimos do performer como o diabo da
cruz. Esquecemos que, pela sua parcial eficiência, aquele trabalho é
o único meio de almejar um pecúlio que o pode tornar igual a tantos
de nós. Descuramos o quanto a sua função laboral é importante
para transformar o dia-a-dia da Baixa de Coimbra, e, com a sua música
e voz, faz a ponte entre o remanso incomodativo de uma rua vazia e o
imaginário bucolismo
campestre com o cantar da passarada.
O
Cortez, com a sua idiossincrasia, sendo um ícone de reconhecida
aptidão musical na Baixa de Coimbra, é um marco distinto na
paisagem urbana.
A vila
da Parede, Lisboa, foi o seu berço e onde deixou centenas de amigos.
A par da Figueira da Foz, o seu refúgio encantado, Coimbra foi a sua
segunda cidade-natal. Nestes três lugares portugueses, para além de
outros, pintou obras plásticas de inegável beleza que espalharam
pelo mundo a sua génese de criação pictórica e artística.
Pedro
Duarte da Silva Freitas foi um artista de excelência. Na última
década foi um residente do efémero e um dissidente permanente da
Lusa Atenas. Homem de extraordinário talento, arrastando-se pelos
interstícios da vida e por opção própria, nos últimos dois anos,
andou pela Baixa de Coimbra quase sempre aos “caídos”.
Por
cá e lá, deixou obras imortais projectadas em tela e aguarela que,
para contemplação metafísica, eternamente nos farão companhia e
impedirão que o manto do fenecimento apague a sua memória.
Em Maio de 2016, sem se despedir, precocemente morreu sozinho como sós vivem os grandes artistas na sua clausura necessária e criadora.
Pelo seu fabuloso génio, pelo desprendimento como viveu a vida, trocando a satisfação do presente pela imprevisibilidade do amanhã, pela legitimidade conquistada na idiossincrasia, o Pedro Freitas tem um cantinho assegurado no coração da cidade e de todos quantos com ele conviveram.
Em Maio de 2016, sem se despedir, precocemente morreu sozinho como sós vivem os grandes artistas na sua clausura necessária e criadora.
Pelo seu fabuloso génio, pelo desprendimento como viveu a vida, trocando a satisfação do presente pela imprevisibilidade do amanhã, pela legitimidade conquistada na idiossincrasia, o Pedro Freitas tem um cantinho assegurado no coração da cidade e de todos quantos com ele conviveram.
O seu
lugar reservado no lancil de pedra em frente ao desaparecido Banco
Espírito Santo, a vender tremoços, amendoins e pistachos há mais
de cinco décadas, está tão habituado à sua presença que um dia,
que seja tarde, se lhe faltar a carga vai chorar lágrimas copiosas
em amargura solidificada. Mais que certo, saído daquele bloco inerte
e frio, vai ouvir-se uma voz saída das suas entranhas: “Adelaide
vem cá baixo, meu amor estou aqui, sinto tanto a tua falta, que
quero morrer por ti.”
Maria Adelaide,
uma Padeira de Aljubarrota, uma mulher do povo que,
se preciso for, corre os infiéis desavergonhados com grossos
impropérios, é uma resistente. Já fez de tudo um pouco, até a
vender castanhas assadas na Praça 8 de Maio. Com mais de noventa
anos de idade, no seu posto de sempre, ainda agora continua a
trabalhar e a driblar o destino que se lhe atravesse para lhe pôr
entraves a uma vida sempre a aviar. É mais conhecida na Baixa que o
“Conquistador”, Dom Afonso Henriques, que repousa ali ao lado no
Panteão Nacional.
Por mérito próprio, conquistado a pulso, é uma emérita representação humana da luta entre o mirrar num sofá e o estrebuchar até ao último suspiro. Gostamos muito de ti, Adelaide!
Por mérito próprio, conquistado a pulso, é uma emérita representação humana da luta entre o mirrar num sofá e o estrebuchar até ao último suspiro. Gostamos muito de ti, Adelaide!
Durante
muitos anos arrumou carros junto à Loja do Cidadão. Depois, como as
andorinhas em busca de terra quente, partiu e deixou de ser visto. A
meio do ano passado, como a dar cumprimento ao eterno retorno,
voltou ao seu antigo poiso. Como folha caída no Natal, todo o
artista é senhor do mundo e o mundo não o reconhece como seu,
aventa-se. Mais velho, mais acabado, não confessa por onde andou.
De
voz caninha, levemente rouca e melodiosa, não fosse o caso de ser
uma pessoa de fino trato, educado, bem-formado, e servil, poderia ser
simplesmente mais um anónimo arrumador perdido nas sombras de todos
nós. Com uma graça imanente, pelo seu carisma, pela sua forma de
estar, o “Zé da Anita”, como é conhecido entre nós,
marca presença vincada onde quer que esteja. Numa função social
que não é considerada profissão e poucos lhe dão valor e
utilidade, o “Zé” marca a Baixa de Coimbra e este tempo
hodierno, que não tendo espaço para a memória dos mais humildes,
apaga tudo o que seja socialmente irrelevante.
Se o encontrarmos hoje, amanhã e depois junto à Loja do Cidadão puxemos de uma moeda e lembremo-nos que o “Zé da Anita”, para além de ser uma figura típica, é um de nós.
Se o encontrarmos hoje, amanhã e depois junto à Loja do Cidadão puxemos de uma moeda e lembremo-nos que o “Zé da Anita”, para além de ser uma figura típica, é um de nós.
Até há cerca de meia-dúzia de anos, Anildo Monteiro, cabo-verdiano de
nascimento, foi um pária, descalço e andrajoso, que, dia e noite, deambulava
pela Baixa. Muito sujo, barba hirsuta e emporcalhada, vagamente se parecia com
gente. Dormia num prédio abandonado no Largo da Maracha. Como pingue-pongue
entre o Ministério Público e serviços hospitalares, que negavam a sua demência
evidente, foram necessários muitos meses para “obrigar” a Câmara Municipal a intervir. Foi internado
compulsivamente em estado de saúde degradante no Centro Hospitalar de Coimbra
(Covões) onde, alegadamente, viria a falecer. Em nome do inalienável ser
pessoa, um caso para reflexão.
O seu lugar reservado no lancil de pedra em
frente ao antigo Banco Espírito Santo, a vender tremoços, amendoins e pistachos
há mais de cinco décadas, está tão habituado à sua presença que um dia, que
seja tarde, se lhe faltar a carga vai chorar grossas lágrimas em amargura
solidificada. Maria Adelaide, uma
mulher do povo, uma Padeira de
Aljubarrota que, se preciso for, corre os infiéis com impropérios, é uma
resistente. Já fez de tudo um pouco, até a vender castanhas assadas na Praça 8
de Maio. Com mais de noventa anos de idade, no seu posto de sempre, ainda
agora, continua a trabalhar e a driblar o destino que se lhe atravesse para lhe
pôr entraves a uma vida sempre a aviar.
20 - IMAGEM – “A MULHER DO PAIXÃO”
Todos os lugares habitados possuem o seu louco
de estimação. Figuras típicas perpetuadas em livros e no nosso fado castiço
como “loucos da cidade”, são o outro lado do espelho da nossa
incomensurável loucura. Coimbra, enquanto urbe de dimensão média, teve e
continua a ter os seus vários “figurões”.
Adelino Paixão um dos ícones maior
marca um tempo. Parceiro de madrugada de outros célebres viandantes como Daniel
“Tatonas”, do Pedro e do Carlos
Alberto Freire, o “Pirilau”, o Paixão
deixou-nos em 2012. Para sempre ficará a sua incontornável rebeldia. Na imagem
a companheira do Adelino num momento
introspectivo de leitura. Atente-se na posição do dedo a indicar “O que vamos nós fazer de tanto amor?”
1 comentário:
Conhece este?:
https://archive.org/stream/typosdecoimbra00mont#page/n1/mode/2up
Já fazia falta nova edição, "revista e augmentada.."
Cumprimentos
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