terça-feira, 3 de setembro de 2019

O CIDADÃO, A CÂMARA ARDENTE E A ARTE DE (DES)ESPERAR

(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)





1. O Cidadão transpõe as portas arcadas do palácio do governador, na Praça 8 de Maio. Entra na Divisão de Atendimento, à entrada, com o indicador carrega na tecla de Atendimento Geral, referente à senha A. O pequeno quadrado de papel informa que são 11h17 do dia 02-09-2019, e que estão 18 pessoas em espera.
Naquela lindíssima sala de tectos pintados provavelmente no século XIX o tempo, talvez pela canícula excepcional em Setembro, é lento e corre devagar. As muitas pessoas sentadas em poltronas almofadadas dividem o olhar entre o plasma, visor da vez, as pinturas por cima das suas cabeças e num ou outro munícipe que entra e tenta acomodar-se até o seu número chegar.
Nos compartimentos de atendimento público, com dois vazios, certamente por férias, cinco funcionários tentam dar provimento ao desejo de cada um.

2. O Cidadão, por tantas vezes frequentar o local camarário, sabe que os detentores da senha A, em média, demorarão uma hora a serem atendidos. Sabe também que os munícipes que escolherem a senha E, para pequenos pagamentos, serão acolhidos em dez minutos, em média.
Há cerca de um mês, o Cidadão tentou sensibilizar a até então directora de departamento para a discriminação que se verifica ali. Como estava demissionária do lugar, só muito forçadamente o recebeu, mas despachou imediatamente para a coordenadora do serviço de atendimento. Simpaticamente a gestora ouviu o Cidadão e disse compreender que não estava certo alguns munícipes serem recebidos em dez minutos e outros, por vezes, mais de uma hora. Prometeu tomar atenção e sensibilizar a chefia (que ainda não sabia quem seria) para o que se passava ali.

3. Finalmente chegou a vez da senha número 41. O relógio marcava 12h34. Ou seja, uma hora e dezassete minutos depois, o Cidadão iria ser atendido nos dois assuntos que levava, o primeiro, tratando-se de uma inscrição para a reunião de Câmara, foi rápido e não causou qualquer reacção à funcionária. Um problema iria surgir no segundo tópico. Tratava-se de uma certidão sobre o exercício de preferência na transmissão de imóveis que, devendo a pronúncia ser exarada no prazo de dez dias -o não cumprimento da obrigação no limite definido implica a prescrição – não foi exercida. Aliás, já perfazia 38 dias. Tudo estaria bem se a escritura pública se pudesse realizar sem a dita declaração. Acontece que sem o apregoado papelinho algum conservador ousa escriturar seja o que for. Portanto, como se adivinha um incumprimento da administração pode facilmente tornar a vida em suspenso de qualquer sujeito.
Tentando fazer compreender a funcionária do que estava em causa, o Cidadão pediu que fosse apresentado uma previsão para a emissão do documento, dois, três, quatro, cinco dias. Mas a funcionária, limitando-se a ler o despacho, com data de 25 de Julho, que constava no computador “Não havia chefia, nem director do seu conhecimento” a quem fazer a tramitação.
O Cidadão, já farto de ser tratado com algum favor paternalista, começou a irritar-se e a levantar a voz. Exigia falar com a responsável hierárquica acima. Vendo que o Cidadão não estava ali para brincadeiras burocráticas, a empregada pública remeteu a chamada para a funcionária que assinava o despacho. Transmitindo à colega que o Cidadão pretendia somente uma previsão para a emissão da certidão, do outro lado do éter a senhora pouco se importou com a ilegalidade formal de que era comparte e, alegadamente, informou que o documento se encontrava pendente no Gabinete da Presidência e não avançava prazo para a sua emissão.
O Cidadão pediu o Livro de Reclamações.

4. Antes de prosseguir, convém salientar que já em Fevereiro, último, aconteceu uma situação exactamente com os mesmos contornos. Uma outra funcionária fez quase o mesmo, com uma diferença ínfima, isto é, prometendo uma data de entrega, não quis saber e esteve a marimbar-se para a sua responsabilidade na prossecução do interesse público. Foram necessários 44 dias para tomar posse do certificado.
O Cidadão, em Março, levou o caso a reunião da Câmara Municipal. Se passados cerca de seis meses tudo continua como dantes, é de inferir que, por um lado, o executivo, enquanto órgão político, não quer saber dos queixumes dos munícipes, por outro, é lícito admitir que algum pessoal contratado pela autarquia de Coimbra, em exemplo vindo de cima, segue os mesmos passos.

5. Como já passava das 13h00, depois de entregar o Livro de Reclamações, a funcionária, sem uma palavra de despedida, foi almoçar.

6. O Cidadão, procurando ser claro, conciso e justo nas declarações, começou a escreveu o que se passou no denominado livro amarelo. Foi então que, tendo necessidade de passar para outra folha, reparou que era a última do livro. Mais uma complicação a fazer prolongar o tempo de espera: não havia outro livro, nem disponível, nem à vista. Passados largos minutos lá veio um novo exemplar. E o Cidadão foi concluir a sua exposição.

7. Acabada a escrita no livro do desespero, seriam nesta altura umas 13h45, havia um novo obstáculo a transpor: não havia rede nos dois computadores ao serviço.
Em face da lacuna cibernética, as duas funcionárias começaram a atender munícipes que não implicassem obrigatoriamente a consulta de processos.
Já passava das 14h00, quando um dos computadores apanhou linha. O visor marcava a senha número 61. A funcionária nunca mais se lembrou que o Cidadão, como padroeira da cidade, se mantinha com dois Livros de Reclamações abertos no regaço e, portanto, nada de o chamar. Foi preciso o Cidadão levantar novamente a voz e interrogar se seria preciso mandar vir o almoço por lancheira.
Foi concluído o seu atendimento às 14h15. Como quem diz, cerca de três horas depois.

8. Mesmo levando em conta as várias queixas exaradas no livro de todos os queixumes pelo Cidadão – sem, até ao momento, uma única resposta do órgão regulador -, será que a imprensa local, a comunicação social, se estivesse mesmo ao serviço do dever de informar o colectivo, não deveria inteirar-se do que se passa com os serviços camarários? Não deveria, por exemplo, saber quantas reclamações foram realizadas nos últimos seis meses?
Por último, o Cidadão deseja boa sorte, e sobretudo que consiga controlar o barco à deriva, à responsável pela Divisão de Atendimento, vereadora Regina Bento. Pela cidade, por todos nós, é bom que tenha sucesso.

(Texto enviado, por e-mail, para conhecimento à Câmara Municipal de Coimbra)

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