sexta-feira, 31 de outubro de 2014

ESTE CANTO É MEU!







Hoje, de manhã, na Rua Eduardo Coelho, na esquina que faz frente para a Rua das Padeiras e Largo da Freiria, aconteceu uma cena caricata. Há várias décadas que a quina, quase todos os dias, é ocupada pelo Eduardo Ventura, um invisual que nos metralha a todos com a lengalenga “uma moedinha, por amor de Deus Senhor!”. Então aconteceu que, logo ao romper do horário comercial, cerca das nove horas, a “propriedade” do Ventura, “adquirida por usucapião”, sem registo oficial, foi ocupada por uma cigana romena, uma rapariga ainda nova, com um copo plástico nas duas mãos, inclinada e projectada para a frente, em posição de submissão. Por volta das 11h00, montado na sua bengala a bater no chão, toc, toc, toc, chegou o Eduardo. Quando verificou que a sua quinta, ou melhor o seu cunhal, estava ocupado começou a barafustar com a mulher para que ela lhe desamparasse a loja e a ameaçar chamar a polícia. A catraia, mais que certo ilegal por terras estudantis de Santa Isabel, sem replicar, saiu de onde estava e foi colocar-se a dois passos, já na Rua das Padeiras. O Ventura, ocupando novamente a sua leira respirou fundo e, no meio de um impropério contra o pessoal que, como ele, estende a mão, pareceu serenar. Foi então que a voz da cachopa, em apelo de falseada lástima martelada ecoou na calçada: “mnh… mnh!”.
O Eduardo, rei e senhor de todas as escuridões do mundo, quando ouviu o pedido mendicante da romena sentiu-se chicoteado pela afronta e desobediência às suas ordens e o seu coração deu um baque que, cogitando, se teria ouvido na Praça do Comércio. De bengala em riste e guiado pela intuição, deu dois passos para agredir a pedinte. Pelos vistos, como ela não estava para se chatear com um qualquer colega de profissão, estúpido e pouco solidário, levantou-se, olhou em frente e foi-se à vida. Mas o Eduardo estava irritado e continuava a rumorejar. Imaginando o seu pensar, “que diabo, já me basta esta cambada de cegos que andam para aí a fazer-me concorrência e agora ainda vem este pessoal de leste? Fonix!”
Perante estas cenas pitorescas, próprias das intrincadas vivências das cidades, há sempre os que, como eu fiz, se limitam a registar mentalmente a cena e, através dela, partirem para o tratamento da interdependência e outros, poucos –diga-se a propósito-, aqueles, os que, perante o abuso de poder de alguém sobre outra parte mais fraca, se indignam e intervêm, pelo menos, para censurar o infractor. E foi o que aconteceu. Um homem de meia-idade, sem papas na língua, reprimiu o Ventura arguindo a sua falta de humanidade e apoio perante pessoas na mesma condição. Mas o Ventura, certo da sua razão, não estava pelos ajustes e cresceu para o homem. Por pouco que não se verificou uma cena a fazer lembrar “Chaplin”.
Moral desta história sem história: num egoísmo exacerbado, nem sempre o que mais sofre entende o padecimento alheio.

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