Hoje, de manhã, na Rua Eduardo Coelho, na
esquina que faz frente para a Rua das Padeiras e Largo da Freiria, aconteceu uma
cena caricata. Há várias décadas que a quina, quase todos os dias, é ocupada
pelo Eduardo Ventura, um invisual que nos metralha a todos com a lengalenga “uma moedinha, por amor de Deus Senhor!”.
Então aconteceu que, logo ao romper do horário comercial, cerca das nove horas,
a “propriedade” do Ventura, “adquirida
por usucapião”, sem registo oficial, foi ocupada por uma cigana romena, uma
rapariga ainda nova, com um copo plástico nas duas mãos, inclinada e projectada
para a frente, em posição de submissão. Por volta das 11h00, montado na sua
bengala a bater no chão, toc, toc, toc,
chegou o Eduardo. Quando verificou que a sua quinta, ou melhor o seu cunhal, estava ocupado começou a barafustar
com a mulher para que ela lhe desamparasse
a loja e a ameaçar chamar a polícia. A catraia, mais que certo ilegal por
terras estudantis de Santa Isabel, sem replicar, saiu de onde estava e foi
colocar-se a dois passos, já na Rua das Padeiras. O Ventura, ocupando novamente
a sua leira respirou fundo e, no meio de um impropério contra o pessoal que,
como ele, estende a mão, pareceu serenar. Foi então que a voz da cachopa, em
apelo de falseada lástima martelada ecoou na calçada: “mnh… mnh!”.
O Eduardo, rei e senhor de todas
as escuridões do mundo, quando ouviu o pedido mendicante da romena sentiu-se
chicoteado pela afronta e desobediência às suas ordens e o seu coração deu um
baque que, cogitando, se teria ouvido na Praça do Comércio. De bengala em riste
e guiado pela intuição, deu dois passos para agredir a pedinte. Pelos vistos,
como ela não estava para se chatear com um qualquer colega de profissão, estúpido
e pouco solidário, levantou-se, olhou em frente e foi-se à vida. Mas o Eduardo
estava irritado e continuava a rumorejar. Imaginando o seu pensar, “que diabo, já me basta esta cambada de cegos
que andam para aí a fazer-me concorrência e agora ainda vem este pessoal de
leste? Fonix!”
Perante estas cenas pitorescas, próprias das intrincadas
vivências das cidades, há sempre os que, como eu fiz, se limitam a registar
mentalmente a cena e, através dela, partirem para o tratamento da interdependência
e outros, poucos –diga-se a propósito-, aqueles, os que, perante o abuso de
poder de alguém sobre outra parte mais fraca, se indignam e intervêm, pelo
menos, para censurar o infractor. E foi o que aconteceu. Um homem de meia-idade,
sem papas na língua, reprimiu o
Ventura arguindo a sua falta de humanidade e apoio perante pessoas na mesma
condição. Mas o Ventura, certo da sua razão, não estava pelos ajustes e cresceu
para o homem. Por pouco que não se verificou uma cena a fazer lembrar “Chaplin”.
Moral desta história sem história: num egoísmo
exacerbado, nem sempre o que mais sofre entende o padecimento alheio.
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