terça-feira, 22 de novembro de 2016

O LEGALISMO TRITURADOR DA MÁQUINA ADMINISTRATIVA

(Foto de Eugénia Sousa)




Caso 1 - Como muitos outros no comércio a retalho, há três anos um reconhecido comerciante da Baixa de Coimbra, em dificuldade para cumprir com as suas obrigações, pediu para aderir ao PER, Processo Especial de Revitalização. O PER tem como finalidade permitir ao devedor que esteja numa situação economicamente difícil ou em situação de insolvência iminente, mas que ainda seja passível de ser recuperado, negociar com os credores com vista a um acordo que leve à sua revitalização.
Tinha pouco mais de 60 anos de idade. Para além de sentir ainda cheio de força, uma falência na vida de um qualquer comerciante que sempre levou a vida comercial a sério é uma espécie de bomba-atómica que, para além de destruir tudo à volta, desde família até amigos, rebenta com a auto-estima do mais forte. Para além disso tinha um empregado com mais de trinta anos de fidelidade à sua causa. Era fácil chutá-lo? Era, se aquele pequeno universo familiar fosse uma multinacional com patronato sem rosto. Então, presumivelmente, depois de muitas conversas à mesa de jantar com os mais chegados, teria optado por, antes morrer no caminho da salvação do que render-se e desistir de lutar contra uma sorte adversa.

Caso 2 – Há cerca de três anos, por ter encerrado a loja onde trabalhava como empregado há mais de vinte anos, um balconista lançou-se numa antiga aspiração: entrar no negócio. Afinal era um sonho por realizar e, aparentemente, o destino estava a abrir-lhe o caminho. Por ser ainda novo, à volta de meio-século, não se via sem trabalhar e a entrar no desemprego. Candidatou-se a um projecto do Instituto de Emprego e Formação Profissional e, recebendo o subsídio por inteiro, abriu uma loja na Baixa. Apesar da sua enorme força de vencer, mareando num oceano cheio de ondas alterosas, as dificuldades, sobretudo pela queda acentuada da procura, foram sempre mais do que muitas. Porque não há corpo que aguente tanto stress e preocupação, sem dormir em noites brancas repetidas, naturalmente tinha de estourar. Há cerca de um ano atrás foi acometido de um AVC, Acidente Vascular Cerebral. Esteve internado nos HUC cerca de dois meses. Neste tempo de internamento, cheia de stock no estabelecimento, a loja funcionou a meio-gás graças a amigos e familiares. Combalido, aspecto magro e frágil, com voz enrouquecida, teve alta para convalescença e com baixa médica na sua residência. Teoricamente deveria ter permanecido em casa a descansar e recuperar. Mas, se fosse, quem vendia as centenas largas de artigos para assegurar os compromissos aos fornecedores? E, como predestinado que tem obrigatoriamente de percorrer um caminho mesmo que seja errado à luz das convenções, esquecendo a doença e a sua notada debilidade, foi trabalhar para a loja.

Focando o caso 1, depois de uma negociação difícil entre todos os credores, incluindo o Estado através da Segurança Social e a Autoridade Tributária -estes, que lhe atribuíram mensalidades fixas-, tentando convencê-los de que tinha ânimo suficiente para continuar a lutar e pagar a quem devia, reabriu a sua loja à cerca de um ano, como é óbvio, cheio de dificuldades mas disposto a cumprir.
Uns meses mais tarde veio o custo administrativo das negociações entre as partes: 4000 euros. Repito, por extenso, quatro mil euros de custas de processo. Não é preciso ser contabilista para ver que esta importância para um empresário falido é uma fortuna. Dividiu em parcelas mensais e continuou a remar em direcção ao cais da esperança.
A semana passada recebeu uma comunicação do fisco a informar que havia ainda coimas, por atraso no pagamento de impostos anteriores, por acertar.
Lamentando profundamente ter escolhido o caminho de tentar acertar a vida, de lágrimas nos olhos, interrogava-me: “que Estado é este, que castiga desta maneira quem trabalhou a vida inteira e, levando um tropeção, teima em limpar a face? Será que há uma intenção premeditada de empurrar quem arrisca para o abismo?

Incidindo no caso 2, há cerca de três semanas a fiscalização da Segurança Social varreu quase a eito todas as lojas da Baixa. Porque o destino por vezes é maldito, como é de supor, apanhou o nosso amigo comerciante, que devia estar em casa de baixa médica mas não podia porque os credores não querem saber de doenças, com a loja aberta e atrás do balcão à espera de um cliente que não prometeu ir. De pouco importou o seu ar cansado, vulnerável e de voz enrouquecida. O que se viu ali, como matéria indiciária, era que foi apanhado com o pé em ramo verde. Atenuantes para uma declarada ilicitude deste género não estão previstas. Consequência? Não se teve em conta o seu estado de enfermo e foi-lhe retirada a baixa. Se economicamente mal estava, adivinha-se, muito pior ficou.
Hoje, com os olhos a lutar para não serem alagados por lágrimas de dor, dizia-me: “estou farto desta vida! Já não aguento muito mais! Um dia destes, sem querer saber das consequências, fecho a porta!

Pode até parecer que estou a defender a ilegalidade. Não é isso. Bem sei que não é fácil fazer de advogado do diabo. Mas alguém tem de gritar, BEM ALTO, que a administração -com todo respeito pelo seu trabalho- está demasiadamente focada no legalismo e insensível aos problemas humanos.

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