segunda-feira, 28 de novembro de 2016

A BAIXA VISTA DA MINHA JANELA





POR MÁRCIO RAMOS

A Baixa de Coimbra é constituída por duas zonas, uma que muitos chamam a baixinha, um bairro típico como se fosse um de Lisboa, com ruas estreitas, janelas com roupa a secar, e onde os comerciantes se conhecem. A outra, a das ruas largas, é constituída pela Visconde da Luz e Ferreira Borges. Engloba-se também Largo da Portagem. A Rua da Sofia, apesar de ser uma via larga, não conta para este campeonato.
Entre ruas largas e estreitas pressinto que há  uma “rivalidade” permanente e já desde há décadas. Os da baixinha queixam-se que todas as iniciativas são feitas nas ruas largas, não cabendo para eles nenhuma animação, e que estes comerciantes das artérias de cima cativam mais clientes que nas vias afuniladas e onde passam poucas pessoas.
Em parte é verdade, mas, pensemos, como podem ser desenvolvidas actividades como, por exemplo, a Feira de Artesanato em ruas tão estreitas? Temos que nos render a evidência, a parte dos becos e recantos encantados tem ruelas demasiado pequenas para eventos. No máximo, poderia ser nas praças e pracetas.
Mas, apesar do que escrevi, não quero dizer que não se possa e deva fazer eventos nesta zona da cidade. Muito pelo contrario, desde ranchos típicos, tunas académicas, teatro de rua, até outros festejos elaborados podem acontecer nesta porção deste centro comercial a céu aberto. Basta olhar para a programação deste Natal da Câmara Municipal.
Mas não venho falar disto. Quero contar um caso que, a meu ver, mostra que os comerciantes da Baixa mesmo com mais animação não acrescentam mais valor económico aos seus negócios como, alegadamente, se deixa entender em relação às ruas largas.
Nos anos de 1980, considerando o apogeu, a Baixa fervilhava de gente. Um comerciante tinha um estabelecimento numa destas ruas largas onde vendia os seus artigos com sucesso. De tal forma havia movimento que tinha também outra loja na baixinha. O negócio corria bem. No fim da década de 1980 e inicio dos anos 90 como o prédio ao lado estava à venda decidiu adquiri-lo e da loja pequena que tinha expandiu pelos dois edifícios. Chegou, inclusive, a ter uma loja num centro comercial. Da minha janela, via, todos os dias, chegarem encomendas enormes com o produto que vendia. O seu comércio corria bem.
Nessa altura, este comerciante tinha a seu cargo mais de 10 funcionários. Dois deles formavam um casal. Era uma loja-âncora neste centro histórico. Era (e ainda é) um comerciante bastante reconhecido e muito respeitado por todos. A sua palavra sempre foi equiparada a escritura.
Por motivos vários, com maior nota, a Baixa iniciou o seu declínio a partir do ano 2000. Quando a crise começou a apertar ainda mais, a partir de 2004, a zona começou a piorar drasticamente, mostrando a falta de clientes e projectando a sua desertificação de gentes. Com menos povo, e os que por cá andavam pouco dinheiro tinham para comprar, o nosso comerciante de que falamos começou a vender cada vez menos e a perder poder de compra. Cada mês que passava, assustadoramente rápido, só com os custos com pessoal, era um rombo sofrido no pecúlio amealhado em anos anteriores.
Para tentar manter o barco à tona, encerrou a loja do centro comercial. Continuou, e foi resistindo mal. A sua loja principal fazia 50 anos. Um marco histórico e importante a que poucos, deste presente e para o futuro, se poderão gabar. Há pouco mais de um ano fechou a outra venda que tinha nesta zona velha. Apesar da sua vetusta idade e estar cansado, mas sempre mantendo a esperança num horizonte mais risonho. Afinal, os governos semeiam crescimento económico com a mesma certeza da vinda das ondas no mar. O problema é que os custos fixos, impostos, taxas e outros, são garantidos e as vendas uma mera probabilidade.
A machadada final, soube eu e perpassou rapidamente pela zona histórica. Foi há cerca de duas semanas. Este comerciante, há mais de meio século instalado na Baixa, considerado, e que tanto contribuiu para o desenvolvimento desta zona, despediu quase todos seus empregados. Resta agora apenas uma empregada. E o dono, obviamente. Receber encomendas é muito raro. Muito raro é também ver entrar clientes -e não é por falta de oferta de produtos. Aquele estabelecimento, com as suas lindas montras, como obra-de-arte, sempre harmonizadas e coloridas, são um espelho do modelo que se pode designar por comércio tradicional.
Em amostra de solidão, num rosto carcomido pela preocupação, hoje, vejo um homem desalentado, como se fosse uma pessoa com uma doença terminal a espera do seu inevitável fim. Da minha janela, vejo-o muitas vezes à porta, pasmado e com o olhar preso em coisa nenhumasem aquela animação de outros tempos, vazio de alegria que contagiava quem passava na rua. 
Consta-se à boca cheia que depois deste Natal poderá fechar. Se assim for, mais um marco comercial que se vai. Um ícone mítico representativo de uma actividade que, como sempre a conhecemos, está a desaparecer perante os nossos olhos. Uma luz, um símbolo, que se apaga em Coimbra.
Nenhum comerciante, depois de tanto dar à cidade, deveria merecer “morrer “ desta maneira. Uma pena! Deveria poder sair pela porta grande. Nunca pela pequena, como se de um criminoso se tratasse.
Espero sinceramente, desejo arduamente, que melhores dias venham para esta Baixa, que tanto amo e tão bem conheço, e para este comerciante que tanto contribuiu para a sua prosperidade e que tantos ajudou. Está ai à porta o Natal. Acredito que milagres humanos acontecem. Basta acreditar?

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