quarta-feira, 4 de novembro de 2015

A HISTÓRIA DE UM COMERCIANTE PORTUGUÊS




Era miúdo quando fui trabalhar para o senhor João;
Tinha terminado a escola, havia pouco mais de um mês,
era tão pequeno e magro, que mal chegava ao balcão,
na mercearia fina, eu era grosso, era só um camponês;
Para cortar o bacalhau em pedaços subia num alqueirão;
Se olhasse para as mamas da dona Lurdinhas, em viuvez,
levava um “caldaço”, uma canelada do meu patrão,
fui crescendo, aprendi, afinal, como qualquer português;
Por vontade do dono, comecei a namorar a criada Anunciação;
Ai que mulher! Quando me lembro dela, na sua seminudez,
tenho vontade de voltar atrás e abraçá-la com força de paixão,
mas o destino não quis, sei lá porquê, talvez capricho, estupidez;
O destino, nas luas do acaso, trocou as voltas ao senhor João;
Como não tinha filhos, queria assegurar o futuro de nós os três,
mas a vida é mesmo assim, não se manda no amor, nem no coração,
embeicei-me por uma “mulheraça”, muito bela, filha de um freguês;
Para além do merceeiro, também o pai da miúda ficou em desolação,
mas quando se é jovem não se pensa de acordo, eu gostava da Inês,
casámos, veio o primeiro filho, o Manelzinho, uma criança de algodão,
o tempo, esse relógio que não pára, marcou o tendeiro em surdez;
Depressa tomei a mercearia no bairro, e de empregado passei a patrão;
Trabalhei noites a fio, não tinha feriados, e até esqueci a minha timidez,
quase sem dormir, fazia tudo para enriquecer e vencer a preocupação,
não tinha folga para o Manelzinho mas as finanças já tinham solidez;
Comprei uma vivenda, como sempre sonhei em noites longas de solidão;
O negócio ia de vento em popa, já pensava abrir outra loja no Marquês,
Manelzinho entrou na faculdade e, de contente, comprei-lhe um carrão,
estranhava o rapaz andar sempre na noite, não estudar e ser um  maltês;
Andava de tasca em tasca, dizia-me que era o costume, a tradição;
Apanhava pielas, era normal na juventude, tão igual como jogar xadrez,
nunca fez uma cadeira, nunca trabalhou, dormia de dia numa consolação,
hoje, o trabalho provoca-lhe pânico, maltrata os pais, ganhou malcriadez;
Abriu o primeiro Continente, levou-me parte da clientela, não vi aflição,
Nasceu a Makro, continuei descansado, o Sol é para todos sem escassez,
vieram o Fórum Coimbra, o Dolce Vita, os Retails Parks, e eu sem emoção,
vinham as eleições autárquicas, batia palmas ao candidato sem sensatez;
Mais lojas abriram de bugigangas, em todas elas se falava Cantão;
Veio o Governo, tirou-me o tapete, fiquei sem trespasse, perdi a altivez,
o centro da cidade ficou vazio, passei a estar à porta da loja, já pobretão,
parecia um arrumador de mão estendida à espera da velhice e invalidez;
A minha mulher, outrora tão bela e equilibrada, agora velhota, perdeu a razão;
Acusa-me de tudo, de não conseguir prever o futuro, até de não ter sensatez,
já vendi a casa, divorciei-me, estou na indigência, falido, já não tenho coração,
não sei o que fazer neste mundo tresloucado do dinheiro, já não tenho liquidez;
Sempre fui ateu, sem acreditar, agora desesperado sou novamente cristão;
Tiraram-me tudo, já nada me resta, vou para a China, quero ser chinês,
já não tenho escrúpulos, até os valores me roubaram, já sou somente ladrão,
olho para trás, não vejo nada, sou o que resta de um comerciante português.



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