(IMAGEM DA WEB)
“Corria o fim da década de oitenta, do século passado. Para os mais novos parecerá que foi há muito tempo. Para mim, que retenho na memória todos os acontecimentos dessa época histórica recente, parece que foi ontem. Digo “histórica” porque parece que, parcialmente, os humanos, na sua belicosidade, pararam expectantes perante acontecimentos que o ultrapassaram e o transcenderam. Entre vários, relembro um que, para mim, é o modelo de que o homem começa no sonho e, na sua praxis, quebra as amarras que o escravizam e prendem a um sistema totalitário: foi a “queda” do muro de Berlim. Separador que impedia que filhos do mesmo pai, vivendo no mesmo país, mas com dois regimes políticos antagónicos se abraçassem e vivessem separados por uma barreira atentatória à liberdade individual.
Tinha eu então trinta e poucos anos. Talvez consequência, ou não, da minha infância miserável, diariamente, abafava as minhas mágoas em álcool. Tudo servia para me anestesiar. Poderia ser um vinho rasco e envinagrado, uma ginjinha, uma aguardente –o meu mata-bicho com que iniciava o meu dia- ou até álcool puro. Tudo servia, desde que me apagasse aquela sensação de angústia, de vazio, de ansiedade e de medo. O álcool era a minha droga. Poderia passar sem a minha mulher, sem os meus filhos, sem a minha “motoreta”, mas sem o meu “ansiolítico” jamais.
Eu morava na altura, e moro, nos arrabaldes de Coimbra. Como vivia cá na minha terra, um conterrâneo que tinha um cargo importante na Câmara Municipal, condoído com a vida miserável que eu proporcionava à minha família, arranjou-me então um lugar nos Serviços de Higiene. Coitado, talvez na esperança de que eu, estando ocupado, talvez deixasse de beber. Mas, debalde. Nada me fazia arrepiar caminho.
Sempre fui respeitador e boa pessoa para toda a gente, incapaz de molestar um qualquer bicho, apenas era mau para mim e para a minha família. Mas eu não tinha consciência do mal que lhes causava. Sempre adorei animais e eles a mim.
Foi então que lá no meu serviço, um certo dia, apareceu um cão vadio: o Tobias. Não sei se seria porque ele se identificava comigo, ou não –ambos éramos escroques e renegados pela sociedade-, a verdade é que o animal, desde o primeiro dia que me viu, nunca mais me largou. Também tinha razões para isso, em boa verdade eu era mesmo amigo dele. Como eu comia pouco, o meu almoço era dividido sempre a "mielas" com ele.
Então, um dia, um colega de trabalho, daqueles que gostam de serem superiores, "gentinha", que para se sentirem importantes têm de calcar alguém. A sua existência só faz sentido se houver desgraçadinhos. Vocês conhecem o género, não vale a pena descrever-vos mais este exemplar de humanóide. Vai daí, o “ser superior” lança-me um desafio: “se conseguires dar uma dentada no cão pago-te uma cerveja”. A palavra cerveja era como uma campainha de despertador que acordava o meu cérebro. Bastava alguém proferi-la para eu me sentir em pulgas. era como se a terra começasse a fugir-me debaixo dos pés e, como a ressacar, a olhar para todo o lado, os meus olhos, em ansiedade obsessiva, pelo brilho intenso, mostrassem: "onde está ela?... Onde está ela?"...
Obviamente que aceitei o repto. Peguei no Tobias ao colo, levei a sua orelha à boca e ferrei-lhe os meus dentes. O pobre animal, ao sentir-se ferido, tentou fugir e ao fazê-lo arrastou o lóbulo do seu ouvido na minha boca e ficou com um grande lenho em forma de golpe. O seu sangue, como em reclamação, perante o meu irracional acto, começou a jorrar em turbilhão e sujava tudo à sua volta. Para complicar, o Tobias já não se deixava apanhar por ninguém e muito menos por mim. O meu colega instigador do meu acto selvagem juntara outros e todos em magote, perante o sofrimento do pobre animal, riam a bom rir em altos gritos de escárnio e maldizer. Em chacota diziam: “olha o homem que mordeu o cão”.
Para meu azar, nessa hora, ia a passar um jornalista do “Diário de Coimbra”, que fora falar com o chefe de pessoal por um qualquer assunto que não lembro. Estava accionada a "bomba atómica". No dia seguinte, em título de primeira página: “Em Coimbra, um homem mordeu um cão”.
No meu serviço, apanhei um processo disciplinar e estive suspenso um mês. Fui levado a tribunal pela Liga Protectora dos animais. Fui condenado em pena suspensa, com vinte e cinco tostões de multa e proibição de entrar no canil –não fosse o diabo tecê-las e pôr em perigo os pobres animais. O juiz levara em conta que eu fora instigado e o meu até aí bom comportamento, apesar de ser um desgraçado, contara a meu favor.
Então, eis mais um acaso na minha vida: nessa altura, aos meus colegas de trabalho saiu-lhes a lotaria. Mil contos, uma fortuna na época! Então um deles, mais uma vez, lança-me um repto: “se deixares de beber oferecemos-te um automóvel”. E eu, como jogador de apostas inveterado, mais uma vez aceitei. Fui fazer uma desintoxicação no Hospital de Sobral Cid e ganhei um Fiat 127 quase novo. A partir daí, nunca mais toquei numa pinga de álcool. Hoje, com 53 anos, sou um homem realizado e tenho uma família feliz. Acabei há dias um curso, inserido no programa “Novas oportunidades”, que me dará o 9º ano. Vou continuar a estudar. Não me vanglorio pelo meu passado, mas não é por isso que vou enterrar a cabeça na areia. Foi assim. Porque conto a minha história, perguntarão? Não sei bem. Talvez, por um lado, porque sou realmente a experiência viva que deu origem ao aforismo popular e também título a um programa de rádio que foi um sucesso. Por outro, sei lá!...Quem sabe a minha história de vida possa inspirar alguém e ajude a torná-lo melhor?”
(HISTÓRIA VERÍDICA E CONTADA PELO PRÓPRIO AUTOR)
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