(IMAGEM DA WEB)
Entrei no autocarro. Num relance, como raio de luz projectado de um farol que varre o mar, os meus olhos percorreram todos os lugares sentados. Havia um, vago, ao lado de uma mulher. E foi mesmo ali que me “assolapei”. Depressa as minhas narinas absorveram o perfume de pinheiro silvestre que vinha da minha companheira ocasional de viagem. Era uma mulher de meia idade, bem vestida, elegante e de ar sóbrio. Lia o jornal da cidade, o “Diário de Coimbra”. Como conheço bem a paisagem, e nada me chamou a atenção, poisei os meus olhos numa notícia plasmada no jornal aberto ao meu lado: “Munícipe lançou apelo para não deixar morrer o MCT (Museu da Ciência e da Técnica)”. A seguir, em desenvolvimento, a notícia descrevia que “depois de o munícipe ter lançado o apelo ao executivo municipal , o presidente da Câmara, Carlos Encarnação informou-o: venha falar comigo mais sossegadamente e ter uma conversa demorada”. Era a página que a mulher pacientemente lia.
Foi então, sem que nada o fizesse prever, que ela atirou de supetão: “coitado do munícipe, se está à espera de ser chamado pelo Encarnação, bem pode esperar sentado. Você não acha?” Interroga-me a mulher, fixando os seus olhos negros nos meus castanhos. Antes de eu ter tempo de responder, já ela replicava: “Estes políticos são uns artistas a “chutar para canto”. É por essas e por outras que esta amaldiçoada cidade nunca sai da cepa torta”.
Claro que o tema interessava-me de sobremaneira e, por isso mesmo, tinha de dizer alguma coisa para que ela continuasse. Então interroguei-a: porque diz isso? “Porquê? Você ainda me pergunta?! Coimbra é uma cidade esquisita, virada para as tricas intestinas. Veja, agora, o caso do Metro: há sempre alguém que descobre uma maneira de colocar uma pedra na engrenagem e assim evitar que as coisas corram normalmente. Verdadeiramente ninguém está interessado em fazer seja o que for enquanto há tempo para a cidade andar para a frente. É como se precisassem do eterno choradinho, do fado desgraçadinho. Sem esses lamentos melosos não conseguem viver. Precisam de eternamente andar a carpir mágoas pelas ruas e vielas. Concretamente, ninguém está interessado em salvar nada. Já foi assim com a demolição da Alta, nos finais da década de 1940, em que a única voz dissonante foi Bissaya Barreto. Depois, em finais dos anos 70, foi o desaparecimento dos velhos eléctricos ronceiros, mandados retirar pelo então edil Mendes Silva. A seguir, nos anos 90, foi retirado o tráfego automóvel e imposto o pedonal nas Ruas Ferreira Borges e Visconde da Luz. Tudo isto foi feito às claras, sem oposição, e até com a maioria dos conimbricenses a aplaudirem. Hoje, parecem umas Madalenas, sempre a lembrar, a chorarem e a lamentarem os erros do passado. Mais grave ainda: a pedirem a reposição do outrora destruído. Acredite, esta cidade está amaldiçoada pelos espíritos “vagueantes” de Camões, do Eça, do Camilo Pessanha, do Trindade Coelho e do mais recente Miguel Torga. São demasiadas almas de escritores célebres para uma cidade só. Pensa que alguém se importa que desapareça o MCT? Repare neste pormenor: foi postado na Internet uma petição contra a política cultural da autarquia de Coimbra, em que Carlos Encarnação era acusado de insensibilidade e autismo perante a cultura da cidade. Era um texto ideológico, onde o entendimento da cultura parecia metafísico. No entanto, mesmo assim, foi subscrito por 1150 pessoas. Hoje, também na Internet, está a correr uma petição on-line para que o MCT não seja desbaratado –PELO DIREITO À MEMÓRIA E PELO DEVER DE PRESERVAR UM MUSEU UNIVERSAL DE COIMBRA. Ora, em coerência, seria suposto que estes preocupados “amigos da cultura” subscrevessem esta petição. Pois sim! Até hoje foi subscrita por pouco mais de meia dúzia de pessoas. Não acha estranho?”. Confesso que realmente não entendo as preocupações desses “cultores”, respondi, para que a senhora se sentisse impelida a continuar.
Prossegue a dama, “como se deve lembrar, Carlos Encarnação acusou este milhar de pessoas de “amiguismo”. Agora veja a conclusão: em face dos seus comportamentos, ambos têm razão. O presidente da Câmara, em face da aparente inevitabilidade de que o MCT vai ser desbaratado, “chuta para canto” e, pouco parecendo importar-se, acaba por dar razão ao grupo de cidadãos subscritores e “amigos da Cultura”. Por sua vez o grupo, ao não subscrever uma petição, num acto concreto de atentado à memória, ao passado e à cultura de Coimbra, vem dar também razão a Carlos Encarnação, de que, realmente, assinaram a tal petição apenas pelo “amiguismo”, pela “partidarite” de uma guerra política suja”.
A senhora desculpe, mas estou a chegar ao meu destino. Que pena não poder continuar a ouvi-la. Levantei-me, toquei o sinal de paragem e encaminhei-me para a porta de saída. Ainda ouvi a mulher perguntar, quase no meio de um grito: VOCÊ JÁ ASSINOU A PETIÇÃO? … OU É UM FALSO IGUAL AOS OUTROS?
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