(FOTO DE LEONARDO BRAGA PINHEIRO)
Corria o ano de 1957 quando a mãe de Malaquias, em fim de estado interessante, se deu conta que o pimpolho se negava a sair do seu ventre materno. Nunca soube se por preguiça se por impossibilidade natural, a verdade é que, durante três dias, foi uma luta titânica da parteira da aldeia para tentar salvar os dois. O pai do futuro rapazinho fora avisado que um deles, a mãe ou a criança, poderia perecer. Claro que, imediatamente, sentenciara: “em caso de escolha, morra aquele que está para vir ao mundo!”
Entre gemidos dolorosos e transpirações sofridas, ao fim de três dias e três noites, depois de um profundo grito cortante ecoando em toda a casa, a parteira, com ar de vencedora, exclamou: “temos gente nova e mantemos a obreira, senhor Afonso!”.
O pai de Malaquias, de olhos esbugalhados, há três dias sem dormir, exclamou: “graças a Deus “ti” Etelvina, estava a ver que essa criatura me matava a minha Maria”.
Estava dado o mote para um iniciar de rejeição do futuro homem, quer pela mãe, que mesmo contrariando a natureza tão profícua na relação materno-infantil vira a sua vida em risco, quer pelo pai, que, pela sua custosa aparição em cena, ia levando para os anjinhos a sua Maria.
Malaquias, não se sabe se por carência de amor, não parava de chorar. Era de noite, era de dia, chovesse ou fizesse sol. A mãe Maria, resmungando por entre dentes a má sorte que lhe coubera em sina, levou-o ao médico da vila. Este, depois de um exame rotineiro, diagnosticara que o puto estava são que nem um pêro. Mas o raio do "meia-dose-de-gente" não parava de reclamar em agudos prantos sentidos. Esta incomodação contínua levou a mãe a ir a uma "mulher de fora” numa aldeia próxima, uma vidente, muito evidente nas coisas futuras. A mulher, olhando para o pequeno Malaquias, sem delongas ou dúvidas existenciais, pronunciou judiciosamente: “este pequeno ser tem fome!”.
A mãe Maria saiu com a mesma interrogação com que entrara. Como poderia a criança ter fome se até mamava no seio o seu leite sagrado? “A bruxa” não estava, certamente, nos seus melhores dias nas artes da presciência filosófica.
Já na sua aldeia, antes de entrar em casa, cruzou-se com a vendedeira de leite, com o seu cântaro debaixo do braço. Entre um cumprimento e uma interrogação acerca do pequeno herdeiro, é então, e sem que nada o faça prever, que o bebé estende o bracito em direcção ao cântaro leiteiro. A vendedeira, talvez movida por um instinto inexplicável, verte um pouco de leite numa das medidas à mão e, aproximando-a da boca do bebé, este ingeriu, de um só trago, o líquido branco segregado das glândulas mamárias da fêmea do boi.
Por acasos, ou não, a mãe Maria ficou a saber que o sustento do seu primogénito era "aguadilhado" e pouco nutriente para a sua necessidade alimentar básica.
A infância de Malaquias foi sempre temperada exageradamente com grandes tareias sobretudo do seu pai Afonso, que, instigado pela sua mãe Maria, tornou o Sábado como dia do castigo supliciante. Afonso era guarda prisional. Estava ausente de casa desde Segunda até Sábado. Fosse pelo hábito repressivo das cadeias do Estado Novo ou por um sentimento de rejeição, que começara aquando do nascimento do puto, a verdade é que o homem-pai, como um Deus vingador, parecia quase odiar o miúdo, seu filho, como se descarregasse nele toda a frustração de uma semana aprisionado entre muros.
O infante já conhecia a rotina: o pai chegava a casa por volta das 10 horas da manhã de Sábado. Durante uma hora, mais ou menos, a sua esposa fazia-lhe o relatório minucioso da semana, das traquinices do piolho, “que andara a jogar à bola na rua, que fora tomar banho, juntamente com outros miúdos, para a represa do vale da serva”.
Pelas 11 horas, mais minuto, menos minuto, as cinturadas estavam a cair-lhe em cima, a ferir-lhe o corpo e a amachucar-lhe a alma, cortando-a, e fazendo esta em mil farrapos. Com o tempo, Malaquias desenvolveu capacidades superossivas à dor, o seu cérebro correra em seu auxílio, criando mecanismos imunitários ao sofrimento. Mesmo sentindo as vergastadas a lancinar-lhe as costas deixou de chorar e, no intervalo de cada cinturada, com um rosto mascarado de dor, pensava enraivecido:“um dia, quando for grande, vou te matar, cabrão!”. Um dia o pai dissera-lhe: “se tornas a tomar banho na represa de vale da serva, dou-te um “enxerto” que te mato!”.
Malaquias sabia que aquela ameaça velada, em caso de incumprimento, seria cumprida. Nunca mais tomou banho na represa. Um dia, num domingo de grande calor estival, ele e outros miúdos traquinas, depois de andarem a brincar às escondidas, estando todos suados, todos correram para a represa de vale da serva. Uns nus, outros meios despidos, todos mergulharam nas frescas águas do rio. Todos não! O Malaquias parou estático, a ver o prazer que os seus colegas deveriam estar a sentir ao serem embrulhados e banhados pelas águas da pequena lagoa. Subitamente, sentiu no seu ombro uma mão calejada tão sua já conhecida: era seu pai que, na companhia de um seu colega de trabalho, se aproximara sub-repticiamente. Aparentemente, aos nossos olhos, perante a razão, tudo estaria bem. Pois! Mas aos olhos de Afonso, seu pai, não estava. Ali mesmo, desenfreadamente, começou à chapada ao rapaz. Como o seu camarada de trabalho interviera a seu favor, enumerando a sua boa conduta –afinal ele não fora tomar banho como os outros, tinha seguido à risca as ordens do seu primogenitor- Afonso, hipocritamente, suspendeu as sevícias. Quando chegou a casa, levou Malaquias para o sótão da casa, amarrou-lhe as mãos atrás das costas, passou-lhe uma corda no pescoço e atou-a numa trave de madeira. Foi buscar o cão e prendeu-o à sua frente. Ali, com o animal como testemunha, brandiu-lhe nas costas várias cinturadas e deixou-o ali preso para o resto do dia. O cão, esse nobre amigo do homem, olhava para ele, de olhos ternos e meigos, parecendo querer chorar.
Malaquias, fruto dessas tareias constantes, ou karma existencial, tornou-se uma pessoa triste, apática, de pouco brilho no rosto. Desde cedo começou a sentir-se um íman atractivo de tudo o que era mau. Sem motivo plausível, sentia ser vilipendiado na rua e agredido sem motivo. Sem razão atendível, era o ir a passar debaixo de uma janela e de repente cair um vaso de flores mesmo ao seu lado ou à sua frente. Enquanto estudante numa das Faculdades de Coimbra, era comum nas orais de exame o examinador, como não fosse à bola com a sua cara, chumbá-lo injustamente.
Já depois de licenciado, concorreu a vários concursos, cujo limite de ingresso eram de vinte concursandos. Várias vezes ficou entre os primeiros. Pois, fosse por artes demoníacas ou do homem, a verdade é que mais tarde era derrogado para vigésimo- primeiro. Depois de "andas para bolandas", lá conseguiu entrar para a função pública e hoje está num serviço de atendimento. É normal, sem motivo compreensível, um utente, logo que se senta e olhar para o seu rosto, começar a insultá-lo e a discutir com ele.
Acidentes de automóvel já foram tantos que nem se lembra do número. Alguns sem explicação. Por exemplo, lembra-se de um, em que estava parado, numa recta, veio um individuo embriagado, bateu-lhe de frente, e destruiu-lhe o carro todo. Milagrosamente apanhou com algumas escoriações. Quando saiu do carro, o prevaricador, também com algumas arranhadelas, começou a agredi-lo ferozmente. Para cúmulo do azar o outro não tinha seguro.
Malaquias interroga-se: de onde virá tanta má sorte? Será que provém de tantas tareias levadas injustamente e, "ipso facto", levou a sua personalidade para campos desconhecidos, em que campeia a tristeza, o desalento e a solidão? Ou, hipoteticamente, como num karma budista, em espírito negativo reencarnado dentro da doutrina espírita, em aperfeiçoamento contínuo, terá de seguir o seu destino preconcebido? E, a ser assim, nesse caso, os seus pais, perante o seu fadário traçado, teriam sido apenas instrumentos ao serviço de um futuro construído antecipadamente? Quem poderá responder?
(HISTÓRIA ESCRITA BASEADA NO RELATO DO AUTOR, AQUI BAPTIZADO DE MALAQUIAS)
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