terça-feira, 21 de agosto de 2007

O ABROLHOS E OS TÍTULOS DE "CAIXA ALTA"




 Hoje sinto falta de qualquer coisa ou de alguém. Olho à volta e vejo rostos vazios, como se carregassem o mundo às costas, como se tivessem perdido o jeito de rir. Bolas, não gosto disto! É que para eu ver toda esta solidão é porque estou igual. Vou passando nestas ruas estreitas, carregadas de história, onde o edificado têm o mesmo brilho dos semblantes. Ou seja, não têm nenhum. Realmente, penso para mim, se as ruas perderam toda a sua graça imanente, como podem as pessoas estarem alegres? Hoje é um bucolismo demasiado implantado, não é que a vida simples, inocente, quase paradisíaca não agrade, nada disso, mas as cidades não são campos perdidos na imensidão, apenas calcorreados por pastores, dos poucos que restam, se é que ainda os há. As cidades são vulcões em erupção, fervilhando de gente, com barulhos quebrando os silêncios incomodativos. É a pequena discussão de rua, é a lenga-lenga do cego na esquina: “uma esmolinha, por favor, senhor…que Deus lhe pague senhor”. É a abordagem das figuras típicas a solicitar-nos uma moedinha. É o romeno a vender o “Borda de água”. É o seropositivo no “cravanço” de uma “flor” -dois bocaditos de fitas coloradas, com um pequeno alfinete- e apelando, num discurso remelado e viscoso, para uma qualquer instituição fictícia de luta contra a sida. É o cigano, com um cesto, a vender t-shirts, com o grito estridente: “comprem meninas…é só 5 euros”. Sempre com o olho no transeunte e outro a ver se vem o polícia municipal. Mas mesmo este ruídos estão a desaparecer. Qualquer dia as urbes serão cemitérios de silêncios, percorridos por vivos-mortos que nem força anímica terão para reclamar de um encontrão levado por alguém mais afoito.
Olho para os comerciantes de rua: apáticos, tristes, como sentinelas em posição de sentido, de guarda às portas, dos seus estabelecimentos. Como se o vazio de clientes passasse a ser a companhia diária de fantasmas invisíveis. E até o Santo Onofre, num cantinho escondido, meio adormecido pelo torpor à sua volta, parece ter deixado de lutar, contra as políticas desvitalizantes e desertificadas de quem nos governa, que, apregoando o bem do todo, leva sistematicamente à destruição do individual. E o mercador de rua, paradigma dessa política de purga neoliberal, assiste à queda diária de mais uma loja que se finou. E, no seu pensar constante, fazendo contas à vida, interroga-se acerca do que quererão estes burocratas de gabinete que não conhecem o pulsar das gentes que populam as cidades.
Fogo, desculpem lá isto, mas como ia a caminhar da Praça do Comércio até à Praça 8 de Maio não pude deixar de pensar nesta coisa. Desculpem mesmo. Que raio de pensamento este, completamente pessimista. Ainda bem que vou beber um café com o meu amigo Almerindo Abrolhos. Ele é para mim uma espécie de carregador energético, quando estou assim, é a ele que recorro, à sua boa disposição recorrente. 
Lá está ele na esplanada do Café Santa Cruz. Parece estar absorto a ler o jornal, mas eu sei que está completamente vigilante, sobretudo “à coca” duma morenaça brasileira, ou duma pálida e esquálida loiraça nórdica. O Almerindo lá nisso não discrimina ninguém. Aprecio este seu altruísmo. Estou a aproximar-me. Apercebo-me do carisma imanente deste homem. Não admira que todas as mulheres gostem dele. Pudera. Se eu fosse mulher queria-o para mim.
-Bom dia Abrolhos…as saudades que tinha de ti, homem. –cumprimento efusivamente com calor, envolvendo as suas mãos nas minhas.
-Xô…”ó meu”, estás-te a passar ó quê? Desconfio que estás “a virar”. Mau, mau, chega-te p’ra aí…descola...descola! –e remata com uma sonora gargalhada, parecia que lhe tinha saído o Euromilhões. Todos os clientes da esplanada levantaram os olhos e até uma “cota” toda bem artilhada fisicamente, que estava a tomar chá, ficou com a com a chávena parada entre o pires e a boca. Parecia hipnotizada.
-Ó pá, vamos mudar de assunto –rematei quase secamente, um pouco incomodado por ter todos os olhos centrados em nós, coisa que para o Almerindo pouco incomoda- vamos mas é às novidades. Conta-me tudo.
-Ó “meu”, por aqui “no lo passa nada”. Isto é uma pasmaceira. Basta veres as notícias nos jornais, a falta de “caixa alta” é “bué” de deprimente. Olha aqui –e aponta no “Diário de Coimbra”- vê bem: “tomateiro com mais de 3 metros de altura”. Como se isto fosse notícia. Parece que estamos no Entroncamento, “meu”. Há dias foi no “Diário As Beiras”: duas páginas para noticiar uma licenciada numa aldeia próximo de Coimbra. Ó “meu” notícia seria alguém que não se licenciou, “tás” a ver coisa? Por este andar, um dia destes até eu viro notícia. "Ó meu", agora já nem o cão que morde o dono é notícia, estes jornalistas não têm faro para a coisa. –conclui o Almerindo com ar solene e profético.
-Ó pá entendo tudo isso –falo um pouco mais grosso, como que a admoestá-lo- mas eu quero saber verdadeiras novidades. Ainda não disseste nada. Estás a perder qualidades, ou é impressão minha?
-Ó “meu”, não me fales assim que até os meus cabelos do peito se eriçam. A única novidade, presentemente, é o duelo entre o Pina Prata e o Encarnação…
-Espera aí –interrompo o Abrolhos de supetão- o duelo? Entre o Pina…quê?
-Ó “meu”, estás lerdo ó quê? Então o Pina Prata não é aquele vereador do PSD que foi em tempos presidente da ACIC e depois vice-presidente da Câmara? E que primeiro era compadre do presidente da Câmara, depois zangaram-se e agora parecem comadres a trocarem galhardetes? –esclarece o Almerindo como se fosse professor. Isto é o que ele mais gosta de fazer.
-É pá, estou a ver…tens de me contar isso tin-tin-por-tin-tin. -solicito com olhos apelativos.
-Desculpa “meu” mas fui nomeado padrinho do duelo que vai ser aqui na Praça 8 de Maio, em frente ao fundador da nacionalidade, para a coisa ter mais solenidade. De modo que tenho ainda que pensar nas armas com que vão lutar. Não sei se aconselhe a espada, a pistola ou se será ao murro. Ainda estou a pensar.
De maneira que, “meu”, desculpa não tenho tempo agora. –começa a levantar-se da cadeira, como a querer pirar-se.
-Ó pá…deixas-me assim? –faço cara de zangado.
-Estou com pressa “meu”, depois falamos. Paga aí os cafés. –e abala a correr.
Fico a olhar para as costas dele, como habitualmente de boca-aberta. Eu sei a causa de ele abalar a correr: ele vai atrás daquela negra boazona de mini-saia.
Mas eu já o conheço, sei que ele um dia destes vai contar-me esta história inteirinha. Além disso estou muito melhor. Até parece que tomei um anti-depressivo. Pareço outro.
Mentalmente agradeço ao Abrolhos, mesmo tendo que pagar os cafés, aliás, como sempre.

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