Lá está o Almerindo Abrolhos sentado na esplanada do Café Santa Cruz. Estão a vê-lo? Não há dúvida! Reparem naquela classe. Aquele homem é uma obra de arte viva. Olhem para aquela pose! Atentem bem. O que vos faz lembrar? Pensem um pouco. É isso mesmo…só que vivo. Sem dúvida parece o Fernando Pessoa na Brasileira do Chiado, em Lisboa. Tem muitas parecenças. Mas o Abrolhos é muito superior. É uma estátua viva.
Lá está ele a ler o "Diário de Coimbra". Reparem, olhem o que vai acontecer. Estão ver aquela turista de mini-saia e com decote até ao umbigo? Já vão ver o que acontece. O abrolhos parece que pressente, é como se tivesse um sexto sentido. Quando ela passar ali perto, da sua mesa. Tomem atenção. Agora! -O Almerindo levanta os olhos do jornal e, com olhos, segue-a. Reparem no brilho dos olhos deste D.Juan. Eu não vos dizia? Este Abrolhos é surpreendente.
Se não levam a mal, vou tomar um café e conversar um pouco com ele.
-Bom dia Abrolhos! É pá! Estás todo produzido. Este teu perfume…(snif…snif), que cheirinho! È “Banderas”…não é?..Sinceramente, não admira que as mulheres te caiam no regaço. Com esta envolvência perfumática…
-É verdade…”meu”…é mesmo “Banderas”…como é que adivinhaste?...Fogo, com essas cheiradeiras, ainda és convidado para cão-pisteiro da GNR.
Não pude evitar uma sonora gargalhada, pela imediata reacção do Abrolhos. Toda gente começou a olhar para mim. Numa altura em que anda tudo triste, de sobrolho franzido, e eu a rir daquela maneira, das duas uma ou sou louco, ou inconsciente –terá pensado aquela gente, pela forma fixativa como me olhavam.
O Abrolhos, hoje, está vestido que é um espectáculo. Calça branca, bem vincada, repetidamente por um ferro de engomar, uma t-shirt azul céu, da Lacoste, e os seus emblemáticos sapatos abicados, de verniz, da Romeu. O seu penteado para trás, à Errol Flynn, misturado com brilhantina.
Vou chateá-lo. Vou fazer-me distraído, e, como se fosse sem querer, vou calcar-lhe um sapato. Vamos ver o que acontece.
-Desculpa ó Abrolhos, foi sem querer, estava distraído, desculpa ter-te pisado.
-Olha “meu”, não faças isto, detesto que me pisem, sempre abominei. É o meu sentido de independência e liberdade –replica o Abrolhos, sem conseguir disfarçar uma irritação surda, ao mesmo tempo que retira do bolso um lenço branco e impecavelmente dobrado. Dobra-se sobre o sapato maltratado e limpa-o com todo o amor e carinho, como se estivesse a cuidar de um menino.
-Desculpa lá, foi sem querer. Não voltará acontecer – repliquei, com sentido pesar e engelhando a cara, para parecer mais convincente.
-Ok, “meu”. Estás desculpado, sei que eras incapaz de fazeres isto de propósito. Conheço-te…
-Vamos falar de novidades –interrompo-o- pressinto que hoje estás tenso, estás continuamente a tamborilar os dedos sobre a mesa. Até me estás a irritar. O que se passa contigo hoje? Desembucha, homem. Somos amigos, não somos?
-Claro! Desculpa, realmente, hoje, não estou nos meus dias –responde o Abrolhos.
-Porquê? Interrogo. Aconteceu-te alguma coisa que não contavas?
-Bem! Contava e não contava. Deveria ter pago o selo do carro até ao dia 31 de Julho, mas como andava mal de “pilim”, deixei passar o prazo…
-Ainda tens o MG vermelho, de jantes raiadas, descapotável? –cortei eu, de supetão, interrompendo a explanação do Abrolhos.
-Claro, “meu”. O meu carro é a minha alma, a minha identidade, é tudo o que eu sou.
-Continua, desculpa ter-te interrompido. Não pagaste então o selo dentro do prazo –incentivei-o a continuar a narração.
-Pois. Como não paguei atempadamente, fui então às Finanças, ali na Fernão de Magalhães -“tas” a ver?-, logo a seguir, no dia 1. É pá! Montes de maralhal! Esta gente deixa tudo para os últimos dias. Já viste? Este povo é ingovernável, como dizia o tal imperador Romano. São desleixados até à última.
-Então mas ficaste chateado porquê? Não estou a perceber! –Atalhei, meio desconfiado de que deveria haver mais alguma coisa.
-Ó “meu” é que acabei por me vir embora, no dia 1. Era tanta gente. Tudo a olhar para o visor electrónico sequencial das senhas. Era giro. Só queria que visses, tudo de nariz no ar, à espera da sua vez. Mas as chamadas rodavam lentas. Parecia o jerico do Zé Malacueco.
-Mas, interroguei, andava assim tão devagar?
-Andava!? Ó “meu “ a fila não andava, rastejava como um cágado. Havia sete guichets de atendimento mas só quatro estavam a atender. “Tas” a ver, não “tas”?
-Ó pá, também estamos em mês de férias, é Agosto, deve haver menos pessoal –contrapus.
-Olha “meu”, lá o andar devagarinho ainda vá que não vá, mas o que me chateou verdadeiramente foi a cara de enterro dos funcionários. Dois homens e duas mulheres. Só queria que visses o seu semblante. Só uma senhora funcionária, por acaso linda, palavra de honra, de cabelos compridos, é que de vez em quando lá arrancava um sorrisito muito a custo. Ó “meu”…mas se visses quando ela ria. Ai meu Deus!..Que espectáculo…
-Então, voltas lá para a semana –reconfortei o Abrolhos, calculando que voltaria às Finanças com muito gosto pela funcionária de cabelos compridos.
-Ó Abrolhos, deixa-me gabar essa tua camisete da Lacoste. É linda! Foste aos saldos, já estou a ver…
-Ó “meu”, se és meu amigo, não me fales em saldos. Eu abomino os saldos. “tas-me” a ver aí a vestir o resto dos outros? Vade Rectro! Parece que não me conheces. Tem dó, “meu” –replica o meu amigo, quase a espumar pela boca. Desta vez é que deixei mesmo o Abrolhos irritado.
-Ó “meu”, queria pedir-te um favor. Podes emprestar-me 50 Euros?
Fiquei de queixo em baixo a olhar para o Abrolhos…
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