terça-feira, 14 de agosto de 2007

O ABROLHOS E O CENTENÁRIO DO TORGA

Passou o fim de semana e eu sem ter uma conversinha com o Almerindo Abrolhos. Fogo, a falta que me faz! Já não sei se vou ao Café Santa Cruz para beber café, se vou pela necessidade de falar com o Almerindo. É que, hoje, pela velocidade que imprimimos à vida, sempre a olhar para o relógio, parece que o tempo deixou de ser universal para passar apenas a ser unicamente nosso. Como se cada segundo perdido, em situações não lucrativas, fosse trágico, como se passássemos a ser “contadores” à enésima fracção de segundo. Como se nos tornássemos “aquela máquina” fria e impessoal, cuja função é debitar acções lucrativas em proveito próprio. Como se até o dar –dar? hoje nada se dá! -os simples bons dias é algo que deve ser rentabilizado, e então passa-se apenas a cumprimentar as pessoas mais chegadas e as importantes. Mas, rapidamente, porque temos pressa, o tempo é dinheiro, porque é escasso e, por isso, urge. É como se, obsessivamente, procurássemos nas acções mais simples uma constante interrogação metódica: o que ganho eu com isso?
Talvez por isso desaparecessem, ou vão desaparecendo paulatinamente, numa escala imparável, os velhos cafés, onde a tertúlia era muito mais do que uma simples conversa de amigos. Era a alma de uma cidade, que, ali, no espaço de quatro ou mais cadeiras, era dissecada até à molécula. Hoje come-se em pé, engolindo de um trago, apenas para confundir o estômago, sem ter muito em conta o valor pantagruélico do confeito; ora se para comer é assim, porque se haveria de perder tempo a conversar?
É por isso, -deve ser mesmo, não tenho bem a certeza- que gosto de conversar com o Abrolhos. No fundo, é como se eu, psicologicamente, como náufrago, me agarre a ele para evitar submergir, e me torne igual às outras “máquinas” que populam por aí. Eu preciso do Almerindo. Ele é, para mim, um dos últimos paradigmas existenciais. É controverso? Sem dúvida nenhuma! Mas afinal só o diferente é controverso. Às vezes, quando sentado na sua mesa, vejo o olhar venenoso com que é amiúde prendado, de quem está à volta, quer homens, quer mulheres. Os homens, obviamente, sentem por ele uma dor terrível de cotovelo. Algumas mulheres sentem que o Abrolhos é um personagem anacrónico, de macho latino que desejam ver fora das suas existências pouco românticas. Acham que o Almerindo, ao despejar nelas aquele olhar de enleio, misturado de lascívia, atenta conta a sua dignidade feminina. Como se ele pusesse em causa a igualdade entre géneros. Como se ele fosse um recalcado, um descompensado de afecto, com problemas para resolver, desde a infância, com as mulheres, quem sabe um complexo de Édipo? Mas quem não tiver, ou sofrer destas insuficiências afectivas, que ponha o dedo no ar.
Para mim, não quero saber! Gosto dele e pronto! Vou beber um café com ele. Lá está ele, sentado na esplanada, a ler o jornal. Volta e meia levanta os olhos, e estes parecem rir, sobretudo quando passa uma bonita mulher. Vou-me aproximando. Vou-me sentar.
-Bom dia Abrolhos! Há uns dias que não te vejo, pá. Confesso que tinha saudades –cumprimento efusivamente, apertando-lhe a mão com calor emotivo.
-Ó “meu”, que é isso?! Chega-te mas é mais para aí. Não te estiques! Mau, mau, estás a passar-te para o reviralho…ó quê? –responde o Almerindo com aquele seu trejeito encantador de dizer as coisas sem magoar.
- Ó pá, lá por ser moda, não me catalogues. Eu faço parte dos últimos moicanos, os últimos resistentes, como tu, aliás –respondo, fingindo alguma indignação, ao mesmo tempo que me escancaro numa sonora gargalhada.
-Ó “meu”, desculpa lá isso! –o Abrolhos pareceu ter emudecido, até parece não me conhecer.
-Ó pá, estás a brincar, ó quê? Isso só me incomodava se fosse verdade. Parece que não me estás a ver, pá! Olha vamos é às novidades. –corto a linha da conversa, como se tivesse utilizado uma lâmina com fio de corte.
-O que me dizes acerca das comemorações do Torga, neste fim de semana, cá no burgo, e da, aparente, falta de atenção do Governo em não se fazer representar ao mais alto nível? É pá uma vergonha! Já viste? Está bem que o Pedro Pita é um homem de cultura, -ó pá!- mas é um representante subalterno, um Delegado nomeado pelo Governo. É escandaloso! –soletro, quase letra-a-letra, esta última frase com grande solenidade, como que a mostrar a minha enormíssima indignação.
-Ó “meu”, tu és curtido! Às vezes pareces-me diferente do maralhal, outras vezes penso que és igual à carneirada. –replica o Abrolhos, de rosto ambíguo, entre o sério e o divertido.
-Ó pá, não me ofendas. Eu igual à carneirada do pensamento único? Estás a confundir-me. –reclamo, puxando dos meus galões de conhecimento adquirido.
-Olha “meu” os convites não se impõem. É um negócio bilateral gratuito. Ou se aceita ou não. Não percebo essa indignação que grassa por aí. Só posso entendê-la dentro do habitual parolismo atávico, ou complexo de pobre, tão característico desta terra, que teima em se pôr em bicos de pés e chamar continuamente a si um estatuto e uma importância que perdeu. Mas, sabendo dessa derrota, assumamo-la de vez e evitemos andar a carpir mágoas por tudo o que é sítio. Qualquer dia, esta cidade, deveria ser chamada de Santa Madalena. -retorque o Abrolhos de cara endurecida pela irritação surda que mina o seu espírito, como que envolvido por um paroxismo.
Reparei que o Almerindo começou a olhar fixamente para os seus sapatos de verniz, comprados na Sapataria Romeu, que tanto gosta de ostentar. Ele não faz a coisa por menos.
-Ó “meu”, já viste os meus sapatos? –interroga-me.
-Já, já vi, são lindos, com esse estilo de John Travolta, a dançar no Grease, por volta de fins da década de 70. –respondi.
-Não é isso, “meu”! Já viste, estão um bocado para o usados…precisava de comprar outros. Não estão a dar com a minha classe, “meu”. O problema é que o vale de correio do desemprego ainda tarda... ó “meu” emprestas-me 100 euros?
-Mas…não acabaste de criticar um certo complexo de pobre…? – deixei a frase suspensa, se eu conheço a Abrolhos para quê fazer-lhe perguntas e tentar compreendê-lo?

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