quinta-feira, 16 de maio de 2019

O FUNCIONÁRIO PÚBLICO E O COMPUTADOR







Nesta Quarta-feira, 15 de Maio, com as temperaturas a rondarem os 30 graus Celsius, o relógio marcava uns minutos depois das catorze. Em passo apressado, envolvido em pensamentos, dirigia-me para a 2.ª Repartição de Finanças, na Avenida Fernão de Magalhães. Na Auto-Industrial, junto aos semáforos, fui despertado pela voz fina do cauteleiro Valdemar que, com duas fracções de lotaria na mão, apelava : “só restam estas duas. São mesmo as últimas!
O Valdemar Ribeiro Simões Martins, agora com 72 anos, invisual desde tenra idade quando, devido à meningite, lhe foram retirados os olhos, é uma figura típica da Baixa, normalmente com assento na porta de entrada do Centro Comercial Sofia, na rua com o mesmo nome. Volta e meia, sobretudo quando o encontro, adquiro-lhe uma promissória da sorte.
Mais uma vez dividido entre o calculismo da esperança de ganhar um prémio e o ajudar a manter-se no ofício de cauteleiro, profissão em desaparecimento e que só subsistirá se contribuirmos, sustive o passo. Para lhe pagar os quatro euros da lotaria popular tinha uma nota de dez euros e o icónico personagem da cidade não tinha trocos para retribuir. Como já é habitual da sua parte, insistiu que levasse comigo os números mesmo sem contra-pagamento. À minha pergunta e se eu não voltar? Prontamente, respondeu: “eu conheço-o! E sei que não me faria uma coisas dessas!”. Fui beber um café, troquei a nota e, regressando para junto dele, deixei todas as moedas.
Rompendo por entre uma muralha de pessoas na entrada da administração fiscal, retirando a senha correspondente ao meu assunto, encaminhei-me para a secção, no primeiro-andar. No dia anterior já estivera no mesmo local e foi-me dito pelo funcionário que precisava de retirar da Internet um impresso referente ao assunto que lá me levou e depois de preenchido era só entregar. Com imensa dificuldade no preenchimento do modelo requerido, lá estava pronto para iniciar o processo.
Chegou a minha vez de ser atendido por volta das 15h00. Havia um problema: faltava ainda um anexo, que não fora informado devidamente no dia anterior. Pensando resolver desta vez tudo, passei ao rés-do-chão para adquirir o dito anexo. Com cerca de quarenta contribuintes de diferença entre o número em presença e a minha senha, dispus-me a aguardar serenamente. Foi então que nas minhas costas comecei a ouvir uns clamores de revolta: “já viram isto? Como é que, sendo hoje o dia 15 e data de acerto de contas do IRS, estão a mudar os computadores na hora de expediente?”.
Com dois técnicos de informática a substituírem as máquinas, no interior da repartição a desorientação por parte dos funcionários era total. Se era certo que as reclamações do público assistente eram uma espécie de ondas do mar, tanto se elevavam rapidamente como logo a seguir se pagavam, a verdade é que o caos estava instalado. Foi então que um proprietário de um estabelecimento próximo, com um maço enorme de impressos acompanhados por cheque, foi ao balcão e pediu explicações. Veio a chefe de secção e, tentando contemporizar, com alguma bonança associada, lá foi dizendo que a ordem de substituição viera de Lisboa e o homem lá acalmou.
A porta principal da administração foi encerrada às 15h30 para poder dar atendimento a todos os que esperavam.
Faltavam dez minutos para as quatro horas – horário de encerramento – uma funcionária interrogou se havia alguém para assuntos sem ser de IRS. Levantei-me e referi que pretendia apenas um anexo2 para concluir a minha diligência. Rapidamente tratou de a conseguir. Havia um problema: a cópia custava 40 cêntimos e eu não tinha moedas. Simpaticamente, disse: “não importa, vá lá acima e veja se resolve o seu problema. Eu pago do meu bolso. Quando puder, vem pagar-me, não se preocupe!
Corri para o andar cimeiro, faltavam ainda uns oito minutos para o fecho da repartição. Com sorte, pensei para mim, a funcionária ajudava-me a preencher a folha e eu terminava o meu fadário. Engano meu! Nem pensar, argumentou a técnica! Não me ajudava a preencher o formulário porque não podia. Tinha de ser eu a fazer a menção. Que fosse à Internet, que lá se explicava tudo!
Furioso que nem um cão raivoso, vim embora com o rabo entre pernas. Se é certo que, como em todas profissões, nem todos os funcionários públicos são iguais, o que está acontecer? Será uma questão de humanismo em desaparecimento, ou é muito mais profundo?
Na volta, reparei que o cauteleiro Valdemar já tinha partido. Em reflexão, sendo ele info-excluído, sem ajuda, como será a sua relação com a Autoridade Tributária?

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