(Imagem de arquivo)
O
Valdemar
Ribeiro Simões Matias,
agora
com 72 anos, invisual
desde tenra idade quando,
devido à meningite, lhe foram retirados os olhos,
está para o Centro Comercial Sofia como Dom Afonso Henriques,
primeiro Rei de Portugal, está para a Igreja de Santa Cruz.
Tal
como fiz com tantas figuras típicas da cidade, embora
em poucas linhas, escrevi a história deste célebre "porteiro" do
antigo Convento de São Domingos em
2014. Certamente por já terem passado cerca de cinco anos, Valdemar
já não se lembra. Quando passo à sua beira, naturalmente,
cumprimento-o respeitosamente.
De
tempos a tempos compro-lhe uma lotaria. Há dias adquiri-lhe uma
cautela. Como não tinha dinheiro à conta, paguei com uma nota
maior, mas o Valdemar não tinha troco. Perante a pequena
dificuldade, disponibilizei-me a ir trocar por miúdos a nota de
vinte, e quis entregar-lhe a fracção que
recuperaria depois, ao mesmo tempo do contra-pagamento.
Com grande convicção e
mostrando-se ofendido,
o nosso mais famoso cauteleiro da cidade, recusando
completamente receber de
volta o
número da sorte grande sem estar paga, retorquiu: “por
favor, não me faça isso. Eu conheço-o, eu sei com quem estou a
falar!”
Tentando
explorar a sua afirmação constatei
e interroguei:
não é verdade que o senhor me reconheça só
pela voz. Se assim é, de onde me conhece, se não vê?
Ficando
um pouco embasbacado, não desarmou: “ora,
ora! É daqui da rua. Costuma
ajudar-me. Então ia esquecer-me de si? Vá ali dentro trocar a nota
e depois venha pagar-me.”
Entrando
num dos cafés do Centro Comercial, tomei uma
bica
e retornei para junto do vendedor da sorte para outros.
Ao
entregar-lhe em mão a verba certa, comentei: o
senhor Valdemar, se fizer assim com todos, um dia destes vai ser
ferrado com um calote.
"Nem pense que faço isto com todos! Eu olho sempre para cara do comprador primeiro” – enfatizou.
"Nem pense que faço isto com todos! Eu olho sempre para cara do comprador primeiro” – enfatizou.
Embora não fosse completamente apanhado de surpresa pelo surreal articulado, dei
uma risada e com
delicadeza
repreendi e
questionei:
não
diga isso, senhor Valdemar! Como
pode o senhor ver se, infelizmente, lhe foram retirados os dois
olhos?
Aproximando-se
mais de mim, como se estivesse a confidenciar ao
meu ouvido,
replicou: “não
diga nada a ninguém, mas eu vejo. Foi Deus que me concedeu este dom.
É muito meu amigo, sabe? Acredita que ontem lhe pedi para hoje não
chover? Agora veja este dia lindo de Sol! É ou não, meu amigo?”
1 comentário:
Amigo:
Belíssima história.
Mas assim tão bem contada...
Deixei de estar aqui... Ou talvez o amigo foi quem deixou de estar ai! Passámos a estar ao borralho, de fumegante malga na mão. O aroma do café entrelaça-se com o da resinha das cavacas de pinho que em pequenos assobios e estalos vão ardendo aos nossos pés. Entontecido pelo cintilar das chamas ouço-o. Fala-me do Valdemar mas tambem de si.
É, concluí, tal como o Valdemar vê o sol, o amigo vê os homens, especialmente os que parecem passar despercebidos.
Quem diz que não se pode viajar à velocidade da luz, nunca leu.
Obrigado e um grande abraço.
Álvaro José da Silva Pratas Leitao
Bradford, Ontario, Canadá
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