terça-feira, 15 de janeiro de 2019

1 - HISTÓRIAS AO VIRAR DA ESQUINA: O CAUTELEIRO CEGO (QUE VÊ)

(Imagem de arquivo)





O Valdemar Ribeiro Simões Matias, agora com 72 anos, invisual desde tenra idade quando, devido à meningite, lhe foram retirados os olhos, está para o Centro Comercial Sofia como Dom Afonso Henriques, primeiro Rei de Portugal, está para a Igreja de Santa Cruz.
Tal como fiz com tantas figuras típicas da cidade, embora em poucas linhas, escrevi a história deste célebre "porteiro" do antigo Convento de São Domingos em 2014. Certamente por já terem passado cerca de cinco anos, Valdemar já não se lembra. Quando passo à sua beira, naturalmente, cumprimento-o respeitosamente.
De tempos a tempos compro-lhe uma lotaria. Há dias adquiri-lhe uma cautela. Como não tinha dinheiro à conta, paguei com uma nota maior, mas o Valdemar não tinha troco. Perante a pequena dificuldade, disponibilizei-me a ir trocar por miúdos a nota de vinte, e quis entregar-lhe a fracção que recuperaria depois, ao mesmo tempo do contra-pagamento. Com grande convicção e mostrando-se ofendido, o nosso mais famoso cauteleiro da cidade, recusando completamente receber de volta o número da sorte grande sem estar paga, retorquiu: “por favor, não me faça isso. Eu conheço-o, eu sei com quem estou a falar!
Tentando explorar a sua afirmação constatei e interroguei: não é verdade que o senhor me reconheça só pela voz. Se assim é, de onde me conhece, se não vê?
Ficando um pouco embasbacado, não desarmou: “ora, ora! É daqui da rua. Costuma ajudar-me. Então ia esquecer-me de si? Vá ali dentro trocar a nota e depois venha pagar-me.
Entrando num dos cafés do Centro Comercial, tomei uma bica e retornei para junto do vendedor da sorte para outros.
Ao entregar-lhe em mão a verba certa, comentei: o senhor Valdemar, se fizer assim com todos, um dia destes vai ser ferrado com um calote. 
"Nem pense que faço isto com todos! Eu olho sempre para cara do comprador primeiro” – enfatizou.
Embora não fosse completamente apanhado de surpresa pelo surreal articulado, dei uma risada e com delicadeza repreendi e questionei: não diga isso, senhor Valdemar! Como pode o senhor ver se, infelizmente, lhe foram retirados os dois olhos?
Aproximando-se mais de mim, como se estivesse a confidenciar ao meu ouvido, replicou: “não diga nada a ninguém, mas eu vejo. Foi Deus que me concedeu este dom. É muito meu amigo, sabe? Acredita que ontem lhe pedi para hoje não chover? Agora veja este dia lindo de Sol! É ou não, meu amigo?

1 comentário:

Super-febras disse...

Amigo:

Belíssima história.
Mas assim tão bem contada...
Deixei de estar aqui... Ou talvez o amigo foi quem deixou de estar ai! Passámos a estar ao borralho, de fumegante malga na mão. O aroma do café entrelaça-se com o da resinha das cavacas de pinho que em pequenos assobios e estalos vão ardendo aos nossos pés. Entontecido pelo cintilar das chamas ouço-o. Fala-me do Valdemar mas tambem de si.
É, concluí, tal como o Valdemar vê o sol, o amigo vê os homens, especialmente os que parecem passar despercebidos.
Quem diz que não se pode viajar à velocidade da luz, nunca leu.
Obrigado e um grande abraço.

Álvaro José da Silva Pratas Leitao
Bradford, Ontario, Canadá