terça-feira, 19 de março de 2019

HOJE É O DIA DO PAI? OU DIA DOS FILHOS RELEMBRAREM O PAI?

(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)







No meu tempo de criança – já lá vão tantas décadas quantos dedos de uma mão -, o pai era o esteio, o sustentáculo, a trave mestra da família. Na velha casa onde o sol penetrava no interior pelas frestas das telhas e sem pudor beijava tudo quanto mexia, incluindo o pulguedo e os animais que, nos currais por baixo, se avistavam pelos buracos do soalho, a sua voz firme era o princípio e o fim do verbo. Ali, abrangendo os quatro patas, todos, sem desobedecer, ouviam e calavam -e ai de quem se atrevesse a contestar, quem o fizesse era severamente punido no momento sem direito a alegações ou contraditório. Era uma autocracia em que o poder do líder era absoluto e ilimitado. Resultado de um tempo austero e de repressão, no entanto visto destes nossos dias, esta estranha forma relacional não era transversal a toda a sociedade. Como em tudo, e ainda bem, cada caso era um acaso.
Apesar disso, mesmo com o afecto paternal pregado por cavilhas que magoavam a carne, entre pais e filhos estabeleciam-se elos de ligação encadeados para a existência dos progenitores e primogénitos. Dito de outro modo, sendo um amor envergonhado, imposto de cima para baixo, mais autoritário do que sentimental, ficava cimentado e gravado para memória futura. Sem livro de instruções, sem exigir uma perfeição que nunca existiu nos humanos, qualquer um de nós, filhos, sabia que, quando a adolescência desaparecesse e os pêlos no rosto se tornassem abundantes, depois de contrair matrimónio, inevitavelmente, durasse pouco ou muito, acabaria a absolver os “excessos” educacionais do pai. Era uma espécie de primado em indulto geracional: perdoar ao pai para ser perdoado pelos filhos. Esqueceria as bofetadas espalmadas num momento de cólera, as cordas dobradas e as cinturadas arremetidas injustamente num corpo frágil, cuja pretensão final era o endurecimento precoce e a contenção de húmidas lágrimas escorridas em cara de anjo. Em consequência, os prantos, sentidos em sofrimento de exasperação, saíam secos como os couratos e os enchidos enrugados e fumados no fumeiro balanceando na chaminé. Era uma provação imposta aos jovens como se cada um, para merecer fazer parte dos adultos, tivesse que provar estar à altura das dificuldades que se adivinhavam para o futuro. A consequência deste trato, por vezes algo cruel, repetidamente, era passarmos toda a vivência a querer provar ao nosso criador sermos trabalhadores, fiáveis e dignos da prossecução do seu sobrenome.
Não havendo a comemoração mundial do Dia do Pai, a celebração, em respeito com beijinho nas costas da mão e a frase “sua bênção, meu pai”, era feita diariamente.
Para alguns de nós, que fomos filhos nesse tempo e hoje somos avós, o nosso pai, pela crueza da época, pela manifesta falta de carinho, sem um beijo ou um sorriso fácil, e dureza do trato, não foi o nosso herói. A sua única preocupação, sem dúvida, era fintar a fome que entrava sem pedir licença nos casebres mal-aconchegados e sem comodidades mínimas.
Hoje, nos dias que nos atravessam, que para fazer lembrar que o pai existe se recorre a um dia especial, mesmo assim, com a data exclusiva virada para a mercantilização, a maioria dos filhos, que tudo tiveram e tanto foram acarinhados, sem um tabefe para recordação, não se lembra que o pai existe. Onde quer que se encontre o espírito dos nossos progenitores, adivinho, estarão a rir de troça e a perguntar-se se, pela penosa lição recebida agora, esta é mesmo a futuração que tanto almejávamos?

1 comentário:

Anónimo disse...

Sr. Luis Fernandes, fiquei surpreendido com o seu post. Com todo o respeito, levar porrada e ser humilhado em menino, não nos faz melhor cidadãos ou mais trabalhadores. Pelo contrário. Uma pessoa pode é tornar-se melhor cidadão, apesar disso, não por causa disso. Deixe-me brincar e dizer que se fosse esse o caso, seriamos agora uma nação mais rica e civilizada do que a Suiça ;)… Quanto ao "elo de ligação".. que elo de ligação? O que acontece é que por vezes a memória nos prega partidas. O que havia mais era medo.
Eu sei que há alguns mitos nisto, mas os pais agora, em média, são muito melhores pais do que antigamente, mais carinhosos, mais atentos e mais respeitosos com os filhos e o contrário também é verdade.
Quanto aos filhos lembrarem-se dos pais… olhe, eu já tenho quase 60 anos, sou de Coimbra, e ainda me lembro de quando os filhos extremosos do antigamente abandonavam os pais no tenebroso asilo de velhos da Rua da Sofia e noutros pelo país, quando não se viam a pedir pelas ruas. Havia violência física e psicológica de parte a parte.
O que eu concluo disto tudo é que a memória muitas vezes nos prega partidas e queremos construí-la à medida dos nossos desejos.

António