segunda-feira, 11 de maio de 2015

A MISÉRIA QUE SE VAI ENTRANHANDO





É segunda-feira, o dia seguinte depois do Cortejo da Queima das Fitas. Na generalidade, logo de manhã toda a Baixa estava conspurcada e o vomitado e copos plásticos espalhados pelo chão eram a normalidade que já não causa espanto. O lixo, mais que certo pela elevada produção do dia de ontem não pode ser recolhido e pelo meio-dia desta segunda-feira apresenta-se a todos quantos percorrem as ruas estreitas e largas. No Largo da Freiria uma mulher mexe e remexe os detritos em busca de alguma coisa de valor.
Na Praça 8 de Maio, terreiro do Panteão Nacional, um vagabundo, com ar escanzorrado, dorme no parapeito do nobel lago que já foi o que foi e agora voltou ao mesmo. Os transeuntes param, olham o homem, murmuram qualquer coisa e seguem em frente. Os turistas tiram fotos à displicência do vadio. Dois agentes da PSP passam ao largo e, ou fazendo que não vêem ou vendo e pelo costume nem ligaram, no seu passo cadenciado, continuam a sua marcha. Dois homens estacam e apontando o quadro de miséria comentam qualquer coisa. Um deles aponta a máquina fotográfica e recolhe a imagem. Eu aproximo-me e consigo ouvir: “isto é vergonhoso! Neste local da cidade, que deveria merecer o maior respeito, ninguém se importa! Vou à esquadra dar conta deste quadro miserável. A PSP tem de intervir!”. Aguardei. Já agora sempre queria saber o que lhe iriam dizer. Passados cerca de dez minutos regressou sozinho. “Disseram-me que iriam mandar cá alguém. Referiram também que o cidadão de aspecto andrajoso que dormitava aqui também tinha direitos. É mais que óbvio que não se vão interessar por isto”, entabulou com algum desânimo para o companheiro de ocasião, Jorge Oliveira, meu amigo e conhecido. Pergunto o nome a este cidadão diferente da maioria, que ousa afrontar um situacionismo que se tornou endémico, e diz chamar-se José Vidal. Confidencia-me que esteve no Norte da Europa e ver lá uma coisa destas sem intervenção social ou da polícia é impensável. Neste meio tempo passam mais dois agentes da PSP no lado oposto do parapeito –embora fosse impossível não se aperceberem do homem deitado. Seguem a sua ronda e param para conversar com um popular no lado lateral do vadio deitado ao Sol. O Jorge Vidal, como insatisfeito com a sua ida sem resposta à Esquadra, atira para o Jorge Oliveira: “vou falar com eles. Isto não pode ser assim!”. Interpelou os dois agentes da autoridade sobre a situação. Calmamente os dois cívicos fizeram marcha-atrás e encaminharam-se para o turista de pé descalço. O homem abriu os olhos, mais que certo com vontade de mandar uns arremedos a quem ousava interromper a sua soneca, mas, perante as fardas, susteve a reclamação. Levantou-se e foi sentar-se no patim do estabelecimento de óptica mesmo ali e a dois passos.
No pórtico do Panteão Nacional, igual a todos os dias, um cego cantarola a lengalenga da pedincha e o “fininho”, um nosso “cromo” morador num destes becos, estende a mão a quem se encaminha para o templo da Igreja de Santa Cruz e vai rogar a Deus pelos pobrezinhos.
A vida continua nesta cidade de muitos copos e bebedeiras, vomitados e lixo de mais. Aos poucos, perdendo a capacidade de reacção, vamos todos convivendo e adptando-nos a esta habituação miserável de deslizar pelo cano. Felizmente que há sempre um Vidal na multidão que ousa levantar a mão. Embora lhos desse pessoalmente, parabéns a este cidadão que não se deixa abater.


1 comentário:

JPG disse...

Caro Luís,

O rapazola (que completará 43 anos em Agosto), além de problemas cognitivos notórios (frequentou a APPCDM muitos anos) que o impediram de saber sequer assinar, muito menos ler, tem o péssimo hábito de beber uns copos a mais.

Não o vi no cortejo, mas acredito que tenham sido umas frescas as causadoras de tal "soneira".

Amanhã vou falar com ele e "puxar-lhe as orelhas".

Abraço!

João Pedro Gaspar