sexta-feira, 6 de junho de 2014

LEIA O DESPERTAR...


LEIA AQUI O DESPERTAR DESTA SEMANA 

Esta semana deixo o textos "REFLEXÃO: INDIGNIDADE"; "33 ANOS DEPOIS..."; "FALECEU A SENHORA MARIA DAS TINTAS"; "O VELHO RELÓGIO PARADO DA ESTAÇÃO NOVA"; e "CAÍDA EM COMBATE"

(Imagem retirada de aqui)

REFLEXÃO: INDIGNIDADE

Conheço bem o homem que está sentado à minha frente. Há um mês que não o via desde quando encerrou o seu estabelecimento e, como menino envergonhado por ter sido apanhado em falta, recolheu às divisões da solidão, bebendo os conselhos na amargura e procurando forças nos interstícios da mente para encarar os olhos de quem se cruza com os seus. Na longa noite de insónia e, certamente, pedindo ao silêncio que lhe trouxesse por favor um momento de sono, imagino o matraquear constante das suas interrogações: “porquê? Porquê? O que fiz de mal? Tenho 81 anos, trabalhei durante os últimos setenta anos. Sempre cumpri com todos. Porquê…?”
O comerciante de olhos encovados e encravados em olheiras negras, que sempre preferiu torcer que quebrar, parece-me um carvalho centenário alquebrado pelo peso enorme dos seus ramos e resignado à sorte que o tempo lhe destinou. No meio de um lamento com olhos humedecidos enfatiza: “Embora as minhas forças estejam debilitadas, estou muito bem psicologicamente. Se alguém me desse trabalho…”


33 ANOS DEPOIS…

Não se sabe se Cristo, quando morto pelos Romanos e pregado na cruz, teria ou não a ver com isto. Mas que é estranho é. Lá isso é! A notícia vem plasmada no Diário de Notícias: “A Direção-Geral do Património Cultural iniciou hoje um processo para desclassificar a capela-mor inacabada da Igreja de São Domingos, em Coimbra, monumento nacional cujo espaço está ocupado por lojas de um centro comercial.” –Há cerca de 33 anos, acrescento.
Não se contesta a verdade dos factos. Confessamos os nossos pecados arrolados na acusação. O que invocamos em nossa defesa, perante a imputação e subsequente desclassificação da Direcção-Geral do Património Cultural, é que estamos perante uma decisão que, pelos anos passados, já deveria ter prescrito e, como prémio de longevidade, manter-se assim “ad eternum”. Com sinceridade, esta iniciativa não lembra ao diabo e muito menos ao Judas, o tal que encravou o Mestre da igreja Católica Apostólica Romana.
No mínimo, este processo de desclassificação é irónico. Tendo em conta a recente classificação da Rua da Sofia como Património Mundial da Unesco, vir arrolar este caso agora, parece intentona de alguém que não vai à bola com a cidade dos estudantes.
Por outro lado, poderemos perguntar: então e são precisos 30 anos para chegar a esta conclusão? Bom, nada se estranha nesta Nação coxinha e com gente que, sem ofensa, parece atrasada… no tempo.


FALECEU A SENHORA MARIA DAS TINTAS

No tempo em que eu pintava as minhas paredes –porque esta época de crise associada leva tudo, até a vontade de fazer seja o que for, e transforma-nos em meros espectadores do vazio envolvente- era na loja do Amaral e Delgado, Lª, na Rua dos Oleiros, que ia comprar as tintas. Ao balcão, como árvore mestra na floresta, estava a atender a senhora Maria Marques Nogueira Guerra Amaral. Simpática, de olhar vivo e introspetivo, falava calmamente e sempre com grande acerto. Para além de ser uma mulher muito bonita, cuja idade nunca apaga os traços do rosto, tinha uma graça imanente que é impossível descrever aqui. Sempre que me via na loja ou fora dela fazia-me uma grande festa. Por força desta tempestade que nos assola, em que estando por vezes na mesma rua ou ao lado parece que criámos ilhas isoladas entre todos, deixei de a ver há cerca de dois anos. Soube por uma vizinha da Rua dos Oleiros que, “devido ao aumento desmesurado da renda e poucas vendas que partilhassem os custos”, encerrou mais ou menos nessa data e as tintas, com a mesma marca, passaram a ser vendidas noutro ponto da cidade, na zona da Relvinha. Também, por coincidência ou não, nessa altura, veio a sofrer de uma doença incurável –baseado em algumas experiências, já há muito que tenho uma teoria: comerciante septuagenário que encerre a sua loja em dificuldades dura apenas, e no máximo, três anos. Talvez esteja a ser cínico ao escrever isto assim, desta maneira e a frio. Mas o estabelecimento constitui para o profissional do comércio a extensão física do seu corpo e o lidar com os clientes a razão da sua existência, o seu espírito. Se desaparece o primeiro, o estabelecimento, deixa de haver lugar para a alma e em pouco tempo tudo se apaga.
Fui surpreendido pela notícia, na necrologia do Diário de Coimbra, da morte da senhora Maria Amaral, de 73 anos. Repetindo, como a conhecia bem e tinha com ela uma tão grande relação de simpatia e amizade não poderia deixar de escrever estas singelas palavras de apreço e homenagem. É com tristeza que vemos partir mais um de nós, que nas últimas décadas nos fez companhia e ajudou a alegrar as nossas vidas. Neste caso, a Rua dos Oleiros perde uma pessoa estimada e nós, vizinhos, sentimos um vazio inexplicável.
À sua família, marido, filhos e restante, em nome da Baixa, se posso escrever assim, os nossos sentidos pêsames. Gostámos muito de com ela ter privado. Foi um gosto. Até sempre, senhora Maria!


O VELHO RELÓGIO PARADO DA ESTAÇÃO NOVA

O relógio da Estação Nova permanece parado, morto e sem vida, há muito tempo. Estará em greve de zelo, como que a mostrar que a cidade nem anda para a frente nem para trás? Estará avariado? Quem vai responder a estas questões é Hermínio Freitas Nunes, proprietário da prestigiada firma de concertos de relógios de Campanário e de Torre e com sede na Marinha Grande “TicTac Temporis”. Hermínio é um dos poucos especialistas nacionais que operam nesta área de conservação e restauro de relógios mecânicos e preocupado com a memória futura. A sua inquietação vai muito além do artesão reconstrutor; é um restaurador de obras de arte do passado, tentando prevenir o presente, para que a história não se separe dos objetos físicos e os vindouros saibam e tomem consciência de que a modernidade não assenta em cortes horizontais mas sim numa linha de continuidade.
Só se compreende que Freitas Nunes seja mesmo assim, um artesão de rara sensibilidade, sendo ele mesmo a trazer-me a indignação do relógio por ele reconstruído em 2009 permanecer naquela apatia, num desleixo inconcebível, e que se incomoda uma maioria a ele toca muito mais. Vamos ler o lamento pungido de Hermínio Nunes na primeira pessoa:
“Em 2009 foi-me adjudicada pela Refer Telecom a obra de restauro deste relógio, que é um das mais pequenas máquinas de torre do mundo, desenvolvido por Paul Guarnier (1801-1869) exclusivamente para fachadas das grandes gares ferroviárias da época. Além de França, sei que exportou estes marcadores de tempo para os caminho-de-ferro portugueses, ingleses e belgas. Desconheço se além deste, restaurado na minha oficina, existe mais algum similar ainda em funcionamento.
Por contrato, e incluído no preço adjudicado na altura, fiquei responsável pela manutenção e funcionamento deste velho marcador de tempo. Acabei por me apaixonar por este velho engenho de registar horas e sem que nunca fosse solicitado para o efeito, por minha iniciativa, sempre que venho a Coimbra lá vou dar um abraço com os meus olhos ao temporizador. Por coincidência ou não, sempre que vinha à cidade constatava a sua paragem e lá ia eu pedir a chave e dava corda ao meu protegido. Este, como a mostrar-me o seu reconhecimento parecendo sorrir de contentamento lá das alturas, ficava a trabalhar noite e dia. Até que há cerca de dois anos para cá deixei de poder aceder à torre. Ou porque não se sabe quem é o responsável –o anterior já se aposentou-, ou porque não sabem da chave, e sei lá de quê mais, a verdade é que o relógio jaz ali inerte e abandonado. E isto dói-me muito, sabe? No fundo, manter uma obra daquela importância histórica e que passou pela minha oficina naquele estado de desprezado, é um descrédito para o meu bom nome. Repito que, financeiramente, não ganho absolutamente nada em fazer isto. Com muito pesar porque me fere a alma, praticamente já desisti de dar vida àquela velha máquina, de valor incalculável e raro espécime museológico. É triste, não é?”


CAÍDA EM COMBATE

 Encerrou no fim da última semana a frutaria Dulcínia, na Rua das Padeiras. Com um projeto de investimento subsidiado pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP) aos desempregados, e aberto em novembro último, a Dulcínia Alves, perante as evidências de poucas vendas e apercebendo-se de que a sua vida estava a complicar-se, dia-após-dia, optou por encerrar.
Vamos ler as suas declarações, que, conjuntamente com o marido, durante sete meses foi nossa vizinha e aqui deixou muitos amigos: “Olhe, tivemos mesmo de optar pelo fecho da loja. Como se estivéssemos sobre areias movediças, estávamos a enterrar-nos cada vez mais. Nos últimos meses do ano passado, novembro e dezembro e até ao primeiro deste ano em janeiro foi bom e deu para compensar. A partir de fevereiro foi um “Deus nos acuda”! Um descalabro completo! Mas teve mesmo de ser assim! Não havia mais nada a fazer! Chorei muito neste último Sábado a retirar as nossas coisas. Foi um sonho que se apagou. É muito triste, sabe? E bolas, eu tinha experiência do ramo! O que se passou é que as pessoas, como subitamente, deixaram de comprar. Entravam na loja, viam os preços e quando eu interrogava se podia ajudar respondiam que não havia o que queriam. Nada disso! Não tinham dinheiro, era o que era! Ainda baixámos a nossa margem até onde era possível mas chegou a um ponto que era só mesmo trabalhar para aquecer!
Gostava de deixar aqui um alerta para os jovens: muito cuidado nestas aventuras comerciais. Não façam como eu, que me atirei de cabeça e agora, como não consegui cumprir com o IEFP vou ter de devolver a verba concedida anteriormente. Felizmente tive a sorte de arranjar um trabalho na Recolte –a empresa que recolhe os detritos urbanos na cidade- e assim, já sei, uma pequena parte do meu salário vai para a reposição. Perdi muito com este investimento. Mas e adivinhar? Se a gente soubesse o que ia acontecer nunca se metia em nada! É ou não é?”

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