sábado, 14 de junho de 2014

EDITORIAL: O MEDO DE AMANHÃ

(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)



 Ontem, sexta-feira, foi noite de marchas populares nesta parte velha da cidade e milhares de visitantes pisaram este chão, se calhar, a primeira vez nos últimos seis meses. Como em certames anteriores, este género de acontecimentos é a sorte grande para os hoteleiros da Baixa e a terminação para as lojas de comércio. Apesar deste prémio mínimo de consolação, muitos comerciantes com quem falei gostaram desta festa e, para completar a cereja em cima do bolo, até venderam e lhes deu alento para justificar o gasto de electricidade. Queixas houve algumas, essencialmente dos vendedores das ruas estreitas. Lamentavam-se eles de que a distribuição do cortejo, tal como nos últimos anos, continua a ser irregular. Segundo duas senhoras comerciantes com quem falei, em coro, diziam: “não se admite que sempre que há eventos na Baixa, quer promovidos pela autarquia quer pela APBC, Agência para a Promoção da Baixa de Coimbra, continuem a ser concentrados nas ruas de cima. É um desrespeito pela nossa participação. Por exemplo, ontem, aqui na Rua Eduardo Coelho, de um total de quinze, passou cá apenas uma marcha. Parece que há uma intenção deliberada de dividir esta parte antiga entre bons e maus –como se aqui fosse o “gueto” dos pobres!”
É Sábado, faltam poucos minutos para o meio-dia num qualquer relógio da Baixa. Entro na antiga loja de ferragens, vazia de clientes onde tudo é velho a começar pelo proprietário, com cerca de sete décadas, e até os dois empregados mais novos, na casa dos “trinta” e “quarenta”, me parecem mais envelhecidos, em idade dobrada, do que o patrão. Depois de satisfazer o meu pedido e eu ter pago, atira o veterano do balcão: “isto é que vai uma vida? Já viu? Ontem andaram por aqui milhares de pessoas. Hoje é Sábado e não se vê ninguém! Para onde foram? Será que a solução é realizar festas todos os dias? Mas como é que podemos dar um porco a quem nos dá um presunto? O que havemos de fazer, senhor Quintans?”
Naturalmente que não tive resposta para dar às angústias sentidas e reflectidas nos traços vincados da fronte do experimentado e agora frustrado vendedor. Se eu soubesse, espalharia ao mundo a boa-nova e eu seria o primeiro a testar a solução. Tal como uma grande maioria sinto-me muito apreensivo e depressivo com o estado letárgico da economia local e nacional. Apesar dos anúncios na imprensa do disparo da busca de bens duradouros, os sinais não são visíveis. Não há procura interna que se enxergue a olho nu. A oferta há muito que, pela falta de dinheiro em circulação, reflexos da quebra de rendimentos, submergiu a carência de necessidades e fez emergir um novo consumidor oportunista, dividido entre duas aflições: a satisfação da sua carência e o aproveitamento alheio. É um comprador frio, insensível, que -exactamente como o vendedor- repristinando o seu lado mais primário egoísta, no fio da navalha, tenta salvar-se, sobreviver, passando pelo intervalo dos pingos da chuva. É certo que somos todos consumidores e só nesta qualidade, enquanto tais, conseguimos pensar. Ou seja, muito dificilmente um comprador se projecta mentalmente e toma o lugar do vendedor. Os consumidores, enquanto massa anónima, abstractamente, são constituídos maioritariamente por pessoas sem afectividade social, em que todos os meios justificam sempre os fins –daí, provavelmente, o aforismo “amigos, amigos, negócios à parte”. Ora, dizia Pessoa que “o mundo é de quem não sente. A condição essencial para se ser um homem prático é a ausência de sensibilidade”. O que tomando à letra o pensamento do grande escritor e filósofo nos remete inevitavelmente para o individualismo isolacionista –o homem que intrinsecamente é um ser social, de sociedade gregária, e ao mesmo tempo associal, eremita e egocêntrico, neste tempo de salvação do corpo, inclina-se perigosamente para este último, para o egoísmo. Isto é, contrariamente ao que se pensa, esta crise económica e social não está a espalhar os valores da solidariedade e da partilha mas antes o seu contrário. E então nesta pretensa análise, chegados aqui e tentando dar resposta ao velho comerciante, poderemos interrogar: como dar a volta?
Nos últimos quarenta anos passámos de uma sociedade atrasada e maioritariamente pobre -mas auto sustentável porque produtiva, poupada e racionalizante de meios- para uma colectividade desenvolvida mas planeada como dependente do exterior, quer nos bens perecíveis –extraídos na agricultura- quer nos bens duradouros –produzidos nas fábricas-, assente no desperdício, onde a reutilização tem pouco relevo. Como entender que diariamente se coloquem no lixo toneladas de garrafas de vidro, de latas de folha, de madeiras, de lixo electrónico, de artigos diversificados e não se intensifique a sua recuperação? Para colmatar o défice de produção nacional, ao mesmo tempo que se travestia a Globalização de religião e se transformava Portugal em nação de serviços e ponte entre o “import-export”, criou-se um consumidor dependente e obsessivo pelo modernismo absolutista. Agora, sem dinheiro e com a procura no vermelho há vários semestres, depois de estarmos todos metamorfoseados em vendedores onde vamos desencantar compradores? À China?

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