segunda-feira, 26 de maio de 2014

ROSTOS NOSSOS (DES)CONHECIDOS: O GREGO



Já passámos tantas vezes por ele nas ruas estreitas e becos de sombras recolhidas da Baixa da cidade. O que nos deixa a pensar e mais impressiona na sua imagem algo vacilante é a sua face carregada de melancolia. Olhar os seus olhos negros, rosto pontiagudo e emoldurado com uma espessa barba branqueada pelo tempo, imediatamente nos reporta para o berço da civilização ocidental, a Grécia. Se formos pessoas de mais de meio-século e continuarmos a pensar, vamos fazer analogia com alguém que vimos no cinema há muitas décadas: Anthony Quinn, no filme Zorba, o Grego, de 1964.
Dá pelo nome de Carlos Leonel Cardoso Gonçalves, tem 56 anos e uma história de vida para contar. Como muitas narrações, a sua biografia dava um livro. Já foi tudo nesta vida, criança problemática, órfão, adolescente complicado, adulto edonista, presidiário, homem rico, sem-abrigo e muito pobre, agora. De rara sensibilidade, os seus poemas –dos poucos que resistem à sua destruição, alega-, num sentimento de dor, falam por si. Mas, afinal, quem é o Grego? Vamos ler as suas declarações:
“Nasci em Lisboa, em 1958. Os meus avós maternos, muito trabalhadores e humildes, eram comerciantes de hortaliça. Tinham uma grande quinta, com trinta mil metros e onde produziam os legumes e outras verduras que iam vender ao mercado. Os meus pais eram pessoas simples, sem grande arrojo para as letras. Contando comigo, tiveram três filhos. Desde que me lembro de existir, sempre fui uma criança irreverente, diferente -talvez difícil, em sentido lato. De tal modo que fui levado ao padre para me benzer e expulsar o demónio que presumivelmente estaria dentro de mim. Sempre fui muito virado para as adições. Lembro-me de com cinco anos ter sido apanhado pela minha mãe a fumar na cama.
Cresci numa família complicada e onde, para mim como mastro de um navio, o seu esteio era a minha mãezinha. O meu pai era alcoólico. Tinha eu onze anos quando o destino, como partida azarada, me levou a minha protectora, o meu amor, e que me acolhia nos seus braços nas noites longas de lua cheia. Nunca mais recuperei. Pelo choque, foi como se tivesse recebido uma segunda alma desconsolada e pintada de negro, de amargura cinzelada. Se já era complicado muito mais fiquei. Não é que pretenda branquear o meu passado e culpabilizar esse acontecimento, mas, na individualidade, somos o que somos resultado de uma circunstância. Sempre fui muito sensível. Escrevo poesia para expurgar o meu sofrimento mas, quando me dá uma crise e para apagar, acabo a rasgar tudo. Tenho uma especial atinência para diferenciar o bem do mal e nunca maltratei ninguém. Estudei até ao ciclo e cheguei a entrar num curso industrial mas a tristeza, projectada na perda da minha mãe, não me deixava cabeça para mais nada e desisti. Nos anos subsequentes, para afogar aquela angústia que me consumia a alma, perdi-me a consumir tudo, desde álcool, drogas, e até anfetaminas. E ganhei esquizofrenia. Vieram as más companhias e, por coisas simples, conheci a cadeia com 19 anos. Estive pouco tempo preso porque tive gente muito boa que atestando eu ser boa pessoa estava naquela situação por falta de apoio familiar e carinho debilitado. Mal saí fui logo cuidar da minha avó até à sua morte. Depois, como se buscasse remédio para o vazio da minha solidão, foi um correr de colo em colo nos braços de tantas raparigas. Não é para me gabar, mas as mulheres gostavam de mim. Tive muitas namoradas. Eu era um “bon vivant”, arrogante, orgulhoso e bem-apessoado. Tive uma série de carros todos artilhados e que completavam o quadro de “matador de corações”. Nunca tive uma profissão de jeito. Fui sempre um biscateiro e distribuindo-me em afazeres variados.
Por morte da minha avó, eu e os meus irmãos, herdámos a quinta e vendemo-la logo de seguida. De repente acordei rico. Entretanto, conheci a mãe da minha filha e, em meados da década de 1990, abrimos uma loja de modas e pronto-a-vestir em Setúbal. Aquilo era uma mina. Era sempre a vender. Ganhei rios de dinheiro. Cheguei a ter duas habitações na cidade do Sado. Uma delas com 140 metros quadrados. Tinha também um carro descapotável. O estabelecimento durou uma década. Foi a separação da minha companheira, levando-me a minha filha, que me aniquilou. Passei uma noite inteirinha a chorar. Lembro-me, até escrevi este poema: A dor de não te ter agride o meu ser/ ver-te, beijar-te e não me pertenceres/ as minhas palavras não as consegues ouvir/ por muito que eu grite não te fazem viver/ vais crescer sem mim, que pouco te posso dar/ não é num dia por mês que eu te consigo amar (...).
A partir daí foi sempre a descer até às catacumbas da consumição. Acabei a perder tudo e a terminar como sem-abrigo, a dormir na rua em cima de papelão. Cheguei a comer dos caixotes do lixo. Foi então que se cruzou comigo a instituição Vida e Paz. Ampararam-me e enviaram-me para a Cáritas Diocesana de Coimbra. Estou a receber o Rendimento Social de Inserção e, com ele, pago um quarto aqui na Baixa e onde habito. Vou comer à Cozinha Económica. Durante o dia faço piscinas contando as pedras da calçada. Mas o que posso fazer mais? Estou muito debilitado, da cabeça e dos pulmões. Tenho uma personalidade muito complexa mas não faço mal a alguém que seja. Domino os meus medos e as vozes que, por vezes, me atormentam. Sou a consequência das más escolhas que fiz, reconheço.
Gostava muito de ter uma companheira, mas quem é que me atura? E sei lá quem vou aturar? Apesar de tudo, sinto-me muito bem aconchegado aqui na Baixa. Todos me ajudam, me respeitam e tratam bem.”

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