quinta-feira, 22 de maio de 2014

O CONSUMIDOR ABUTRE



No pequeno estabelecimento de hotelaria onde almoço diariamente por 5,50 € posso comer uma boa sopa, vários bocados de broa e pão, um prato bem servido de carne ou peixe, à escolha, uma bebida e um café. É normal ser-me perguntado: “quer mais um bocadinho, senhor Luís?”
Nos últimos tempos, como o número de clientes continuasse a cair, a dona do pequeno snack-bar lembrou-se de arranjar uns cartões com quinze quadrículas. A cada refeição consumida corresponde um traço. Depois de ter o cartão completo o cliente terá direito a um almoço grátis. Ou seja, o resultado deste desconto passa a refeição para 5,16 €. Então vejo pessoas sentadas ao meu lado e que conheço bem e sei a sua condição económica de relevo a, sofregamente e como se fosse a sua salvação, elevarem o cartão em busca do risco. Ninguém ousa interrogar-se: “será que a senhora consegue ganhar dinheiro assim, desta maneira, a fazer descontos para se conseguir aguentar?” –declaro solenemente que declinei a oferta do bilhete.
Tenho uma loja de comércio aberta há cerca de 20 anos na Baixa da cidade. Perante a queda acentuada e progressiva da procura interna, o desalento e a falta de motivação para continuar já há muito tomou conta de mim. É preciso dizer que o que move um negociante é a compra e venda –e uma e outra, como irmãs siamesas, estão agarradas. Se a última, a venda, decai logo arrasta a compra. Acho muita graça aos propagandistas quando apregoam aos sete ventos para que quando chove deve vender-se guarda-chuvas e não olhar para os grossos pingos da bátega que lhe caem em cima. Filosofia de quem não sabe o estado em que se encontra o comércio tradicional. Tenho para mim que, na actualidade, transversalmente os profissionais deste ramo andam todos numa preocupante depressão.
Tal como outros comerciantes, para conseguir fazer negócio, desde já há uns tempos tive de optar por fazer grandes descontos. Se não for assim não se consegue vender seja o que for. Mas fui mais longe. No vidro da montra coloquei uma mensagem assim: “Esta loja, tal como a maioria, está na iminência de encerrar. Entre, deleite-se e compre se puder, enquanto está aberta. Em contagem decrescente, apenas vai restar a memória.”
Perante a mensagem -como se vê ambígua- vale a pena contar o comportamento das pessoas que transpõem a porta. Uma grande maioria, dirigindo-se-me, começa por me interpelar: “vai encerrar? Não posso crer! Ai, não pode fazer isso! Uma loja tão linda!”. A seguir dão uma volta ao estabelecimento e apercebem-se das reduções de 20 e 50 por cento. Pegam numa qualquer peça e, mirando-a de trás para frente, interrogam sobre o preço, fazendo contas de cabeça sobre o desconto… e seguidamente oferecem metade. Isto é, prometem dar um quarto do seu valor inicial. Por conseguinte, esquecendo toda a sua argumentação anterior em que manifestavam pesar pelo futuro de mais um ponto de venda, como abutres cheirando o sangue fresco da manada, tentam retirar o máximo de proveito da minha fragilidade. Apesar das minhas imensas preocupações acerca do futuro da minha loja e dos comércios em meu redor, por enquanto, ainda posso negar-me a vender artigos com prejuízo e então com um grande desplante, com uma cara de pau, agradeço a oferta e remato dizendo que hoje já almocei, venha amanhã que, se calhar, até lhe venderei o artigo ainda por menos desta sua oferta. Então acontece uma coisa interessante: o até aqui arrogante comprador, como apanhado em falta, cai em si e, desfazendo-se em mil desculpas, não sabe onde se enfiar. “Ai, desculpe! Não queria ofender! Não era isso que queria dizer! Por amor de Deus! Sabe? É que eu sou o comprador, não é? E sempre foi assim! Uma pessoa tem de negociar, não é?”.
Com alguma pachorra, quando ainda consigo tê-la, lá vou explicando que, nos tempos que correm, cada vez mais é imperioso que o cliente detenha alguma moral e ética projectada numa responsabilidade acrescida perante o vendedor. Aquele, o adquirente, muitas vezes, terá de esquecer que está por cima, que detém o dinheiro para pagar, e olhar olhos nos olhos quem está em dificuldades para conseguir sobreviver. Chama-se a isto sensibilidade social e comunitária. Quem está no comércio sabe do que falo, está em marcha uma subjugação do vendedor e um domínio para o comprador –já tive um caso em que o cliente, levantando as notas na mão, atira: “mas o senhor não quer vender? Mas eu tenho o dinheiro! E o senhor denega a venda?”
Como disse, por enquanto ainda posso negar alienar o que me dá prejuízo. E quem precisa mesmo de vender a qualquer jeito para fazer face às suas despesas diárias? Como é que faz? Naturalmente vende e em cada transacção que não tem lucro vai ficando cada vez mais fragilizado, empobrecido, e sem meios para repor a sua anterior existência. Isto é preocupante! E não escrevo apenas por mim. Declaradamente, estamos em deflacção económica e ninguém fala nisto. As coisas perderam completamente valor e passaram a ser um estorvo para quem as adquiriu com tanto esforço e satisfação ao longo da vida  e passaram a ser velharias sem interesse para os descendentes. As necessidades vão perdendo a sua importância e passam a ser apenas o que podem ser.
Perante a crise galopante que soterra quem mais precisa, este comportamento excessivo e abusivo do consumidor é o que é! Estamos em plena selva social e onde os mais fortes se sobrepõem aos mais fracos. Estamos no tempo da caça ao homem. No aforismo de Thomas Hobbes, filósofo inglês da Idade Moderna, em que o Homem é o Lobo do Homem, em que o comprador, o dono do dinheiro, apercebendo-se da vulnerabilidade do vendedor, espezinha-o, humilha-o como se fazia aos escravos até meados do século XIX. Uma pergunta emerge: mas, ao longo da história mercantil, da compra e venda, não foi sempre assim? Foi! Mas que custa muito estar no lugar do calcado, lá isso custa! Fosca-se!

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