Pegando na frase do novo Bastonário dos Advogados, António Marinho e Pinto, de que “Não há justiça sem cidadania. Não há cidadania sem justiça”, podemos especular um pouco sobre o tema justiça e cidadania, hoje, tão candente, na boca de toda a gente.
Afinal o que é isso de cidadania? Comecemos por aqui. Será apenas a prerrogativa, a regalia aplicada a um cidadão, que na sua qualidade de burguês ou habitante que vive e trabalha na cidade? Vejamos o que diz o dicionário: “qualidade de cidadão; vínculo jurídico-político que, traduzindo a pertinência de um individuo a um Estado, num conjunto de direitos e obrigações”.
Nesta acepção é o mesmo que nacionalidade. Nos termos da Constituição, são cidadãos todos aqueles que como tal sejam considerados pela lei ou por convenção internacional. Não deixa de ser curioso, a partir de 1791, sobre os auspícios da Revolução Francesa, atribuir-se este qualificativo citoyen a todos os habitantes da cidade com direito a voto e que, por decreto, deveria substituir todas as antigas formas de cortesia “monsieur e madame”. Os seja, pressupõe-se que, em pleno iluminismo, contrariamente ao Ancien Regime, havia a preocupação de consignar a todos os mesmos direitos e as mesmas obrigações. Acabando com os títulos valorativos de classe. Curiosamente por cá tudo continuou na mesma. Apenas uma curiosidade.
Retomando então o vínculo “jurídico-político” relativo a cidadania, e acolhendo a frase do Bastonário dos Advogados, analisemos então, hoje, de que modo esse vínculo é exercido. Para se exercer uma obrigação –reivindicar um direito é mais fácil-, no caso a cidadania, ela deveria ser respeitada e considerada um “valor” –muito mais que um princípio Constitucional, que, no fundo, não passa de algo estático e plasmado no supremo livro das leis da República- despoletada, acarinhada e incentivada pelo poder político. Acontece que não é. Os gestores da res publica não gostam de quem exerce em pleno o valor cidadania. Aliás, criam barreiras desmotivadoras, que só sendo bastante teimoso se consegue calcorrear. Aos olhos do gestor da polis este indivíduo é considerado um “outsider”, um não alinhado, um perigoso promotor de conflitos. Só quando, mais tarde, este cidadão começa a ser reconhecido pelos seus entes com respeito, alguém que se preocupa com eles, um defensor que advoga a bandeira das suas fragilidades perante um poder tantas vezes absolutista, só então o domínio político desce do seu pedestal aparentemente inatingível, e, quase como milagre passa a tolerar este “invasor” do seu poder omnipotente. Da tolerância passa ao aliciamento, e do aliciamento à proposta de mudança de posição para o seu lado. Sabendo que assim calará uma voz incómoda.
Por acaso o leitor já tentou exercer um direito simples de cidadania, por exemplo, tentar falar numa assembleia, ou executivo Municipal? Certamente, talvez não. Mas posso contar-lhe aqui os escolhos que quem o quer fazer terá de pisar. Vou contar o que se passa em Coimbra. Imagine que é a primeira vez que o faz. Entra nos Paços do Concelho. Mesmo à sua frente depara-se-lhe um “securitas”. Conta-lhe ao que vem. Ele mandá-lo-á subir um grande lance de escadas, lá ao cimo destas que vire à esquerda e bata na segunda porta. Você sobe, vira à esquerda, e encontra uma pequena saleta com uma série de portas fechadas, de um lado e de outro, com três metros de altura. Aí começa a sua primeira dificuldade: é do lado esquerdo ou direito? Depois de uma hesitação, arrisca no lado direito, na segunda porta. Bate, bate e…nada. Bom, nesse caso, arrisca a terceira porta. Bate com força e nada. Continua a bater, como se martelasse a aldraba de uma quinta no Minho. Finalmente alguém abre. Teve sorte, é uma bonita mulher e, ainda por cima, muito simpática. Transmite-lhe o que o traz ali. Vai mandá-lo esperar. Você espera e quase desespera. A bonitaça demora. Finalmente vem com uns papéis na mão para você preencher. A sua identidade, a sua profissão, e que assunto o leva ao executivo Municipal? Saberá que tem de preencher este formulário com uma semana de antecedência? Não sei o que se passa noutras autarquias, certamente que os seus processos estarão de acordo com o Código de Procedimento Administrativo, mas a verdade é que por vezes, mesmo estando “dentro da lei” são criados pequenos entraves que, a quem não está habituado, à primeira dificuldade esmorece. Até porque expor-se e falar em público não é fácil. É aqui, nesta inacessibilidade, que a comparticipação cívica, a cidadania, ao invés de ser motivada, morre à nascença.
Repetindo o mesmo aforismo, de que não há cidadania sem justiça, afinal o que é a justiça? Justiça será “apenas” a aplicação da lei que se exerce no tribunal através do direito? Nada disso. Pode haver direito e não haver justiça –basta lembrarmo-nos dos Tribunais Plenários no Estado Novo. Mas também pode haver justiça sem direito – o direito é um conjunto de normas gerais e abstractas, dotadas de coercibilidade, que regulam os comportamentos e as relações numa sociedade-, o direito natural respeitava o homem independentemente de qualquer convenção ou legislação.
Então, nesse caso, o que é afinal a Justiça? Aristóteles deixou-nos em legado que a Justiça é a soma de todas as virtudes, a virtude universal. A justiça é um desejo de equidade, uma transcendência humana, uma realização imanente de igualdade que sai de dentro (de nós) para fora –o direito, contrariamente, é algo imposto de fora para dentro (de nós). Embora, há que ter atenção, como dizia Cícero, a obsessão pela igualdade pode levar à iniquidade, se não se levar em conta a alteridade, as diferenças de cada um.
É então chegado o momento de concluirmos que quando falamos em crise da justiça, associando-a essencialmente aos tribunais, mais não estamos do que a desonerar-nos da nossa responsabilidade, do valor “aequitas”, de que falava Cícero. A verdadeira crise começa em nós, pessoa, depois perpassa às instituições públicas, acabando toda esta falta de respeito pelo próximo, como diarreia conflitual, nos tribunais. Penso que a crise das religiões, num continuado e cada vez maior agnosticismo e ateísmo, leva a um “endurecimento”, a uma maior insensibilidade humana. Fala-se numa nova sociedade emergente, apelidada de litigante, associada a um consumo exacerbado e à criação de novos produtos e de novas necessidades materiais, que no fundo, penso, tentam preencher o vazio existencial que existe dentro de cada um de nós.
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