Há uma semana fui vê-lo ao IPO, Instituto Português de Oncologia Francisco Gentil, em Coimbra. Eu sabia que o Saraiva estava muito mal. Há muito tempo que o cancro que minava o seu corpo, encurtando o resto da sua vida, como torpedo imparável, ia avançando sem que nada o conseguisse deter. Como se estivesse a vê-lo agora, estava lúcido sentado numa cadeira de braços. Tinha naturalmente um aspecto muito debilitado. Além de eu saber que estava em fase terminal, notava-se o seu ar esbranquiçado, cadavérico. Apesar disso, nestes casos anómalos, quando visito um doente, é para mim sempre um conflito. Estar calado, marcando apenas presença, falarmos de assuntos vagos, ou falarmos da sua doença? E se falando dela, sabendo nós todo o historial clínico, o que se deve dizer?
Faço sempre a mesma coisa, entro pela porta da mentira condescendente, do tipo de verborreia que ninguém acredita, nem eu, mesmo esforçando-me por parecer convincente, muito menos o doente que me escuta, e foi o que fiz mais uma vez.
“ Então como vai isso Saraiva?!...Estás com bom aspecto. Pareces mais novo, até o cabelo retornou, e mais preto ainda”. -Entrei com ele, tentando ou achando que com isso o animaria.
Ele olhou para mim, com os seus olhos tristes, não proferiu palavra, mas o seu silêncio, embrulhado na mensagem do seu olhar, disse-me mais do que se tivesse falado. Foi como tivesse dito “porque não te calas? Achas que não sei o que me espera? Precisas de mentir descaradamente? Pensas que sou parvo?”.
Passado um tempo, em que pareceu estar absorto, soletrou meigamente, de forma conclusiva, que não admitia réplica: “ goza bem a vida Luís. Goza o teu dia. Goza-o como se fosse o último. As coisas que deveria ter feito e não fiz. As viagens que rejeitei, para poupar dinheiro. Para quê, saberás tu responder?! Foi-me proposto ir a Espanha, fazer uma operação, um novo método, através de uma total transfusão de sangue, davam-me 80% de garantias de sucesso. Custava dez mil euros. Não fui. Até os tinha… pensava que isto passava. Estás a ver, vou eu e o dinheiro fica… “
Hoje, dia 31 de Dezembro, em que todos velamos o ano velho, para logo, antes da meia-noite, cuidarmos do encaminhamento e do seu féretro, o meu amigo Saraiva foi a enterrar, por acasos do destino, umas horas antes do funeral do ano de 2007.
Que lições a tirar de um ano velho que se vai e uma vida que se finda? Muitas. Façamos os possíveis para deixarmos de nos preocuparmos com coisas simplistas de lana caprina. Esta nossa mania de ampliarmos os nossos problemas até à exaustão, esquecendo-nos, tantas vezes, que mesmo ao nosso lado estão problemas gravíssimos sem uma única solução possível. E, como o meu amigo Saraiva, sem um queixume em relação ao futuro, apenas lamentando aquilo que não fizeram em prol de si mesmo.
Às vezes somos tão miudinhos e mesquinhos, não somos? Vale a pena pensar nisto?
Que a morte do meu amigo, na sua frase profética, carpe diem (goza o teu dia), sirva para nos fazer parar um momento, neste movimento louco, e pensar se vale a pena continuar no mesmo estilo de vida que levámos até hoje.
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