sábado, 6 de maio de 2023

FALECEU O VALDEMAR CAUTELEIRO




Durante décadas, fizesse chuva ou Sol, o Valdemar Ribeiro Simões Matias, a pedir uma moeda e a vender Lotaria, foi figura típica presente na Rua da Sofia, à porta do antigo Convento de São Domingos e transformado em Centro Comercial na década de 1980.

Soube hoje, através do Diário de Coimbra, que, com 75 anos, faleceu e foi a sepultar.

Porque, em resenha, mais do que uma vez e a última em 2019, escrevi passagens da sua história de vida, entendi trazê-la de volta em jeito de homenagem.

Em nome da Baixa, se posso escrever assim, e em meu nome pessoal, à família enlutada os nossos sentidos pêsames.


HISTÓRIAS AO VIRAR DA ESQUINA: O CAUTELEIRO CEGO (QUE VÊ)



O
Valdemar Ribeiro Simões Matias, agora com 72 anos, invisual desde tenra idade quando, devido à meningite, lhe foram retirados os olhos, está para o Centro Comercial Sofia como Dom Afonso Henriques, primeiro Rei de Portugal, está para a Igreja de Santa Cruz.

Tal como fiz com tantas figuras típicas da cidade, embora em poucas linhas, escrevi a história deste célebre "porteiro" do antigo Convento de São Domingos em 2014. Certamente por já terem passado cerca de cinco anos, Valdemar já não se lembra. Quando passo à sua beira, naturalmente, cumprimento-o respeitosamente.

De tempos a tempos compro-lhe uma lotaria. Há dias adquiri-lhe uma cautela. Como não tinha dinheiro à conta, paguei com uma nota maior, mas o Valdemar não tinha troco. Perante a pequena dificuldade, disponibilizei-me a ir trocar por miúdos a nota de vinte, e quis entregar-lhe a fracção que recuperaria depois, ao mesmo tempo do contra-pagamento. Com grande convicção e mostrando-se ofendido, o nosso mais famoso cauteleiro da cidade, recusando completamente receber de volta o número da sorte grande sem estar paga, retorquiu: “por favor, não me faça isso. Eu conheço-o, eu sei com quem estou a falar!

Tentando explorar a sua afirmação constatei e interroguei: não é verdade que o senhor me reconheça só pela voz. Se assim é, de onde me conhece, se não vê?

Ficando um pouco embasbacado, não desarmou: “ora, ora! É daqui da rua. Costuma ajudar-me. Então ia esquecer-me de si? Vá ali dentro trocar a nota e depois venha pagar-me.

Entrando num dos cafés do Centro Comercial, tomei uma bica e retornei para junto do vendedor da sorte para outros.

Ao entregar-lhe em mão a verba certa, comentei: o senhor Valdemar, se fizer assim com todos, um dia destes vai ser ferrado com um calote.
"Nem pense que faço isto com todos! Eu olho sempre para cara do comprador primeiro” – enfatizou.

Embora não fosse completamente apanhado de surpresa pelo surreal articulado, dei uma risada e com delicadeza repreendi e questionei: não diga isso, senhor Valdemar! Como pode o senhor ver se, infelizmente, lhe foram retirados os dois olhos?

Aproximando-se mais de mim, como se estivesse a confidenciar ao meu ouvido, replicou: “não diga nada a ninguém, mas eu vejo. Foi Deus que me concedeu este dom. É muito meu amigo, sabe? Acredita que ontem lhe pedi para hoje não chover? Agora veja este dia lindo de Sol! É ou não, meu amigo?


O CAUTELEIRO CEGO


Sou o cauteleiro Valdemar
com poiso na rua larga,
vendo a sorte grande em fracções,
esquecendo as minhas aflições,
dou a esperança a quem joga;
Vejo o mundo numa só cor
com um sorriso nos lábios,
prego a todos o meu amor,
falo com Deus, Nosso Senhor,
para nos dar felicidade.

Deus diz... para eu ser feliz,
foi o que eu fiz,
e nada mais!
Dizem que sou pobre cego,
por não enxergar a luz,
tenho pena, não o nego,
não faço disso uma cruz,
nem às costas a carrego;
Tenho uma enorme intuição,
e sou capaz de adivinhar
quantas pedras tem o chão,
quantos peixes tem o mar,
mas eu não quero!




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