sexta-feira, 5 de maio de 2023

UMA “ESTÓRIA” AO VIRAR DA ESQUINA

 




Encontrei-o hoje, por acaso, na esquina do fala só. Eu soubera que ele há pouco mais de um ano sofrera uma trombose que o ia mandando desta para melhor. Na aldeia da Parvoeira chegou mesmo a constar-se que não se safava, que estava mesmo à espera da morte. “Era tudo uma questão de dias”, dizia-se em sussurro condoído e carregado de lástima de carpideira. “um rapaz tão novo… Ainda não fez os setenta, pois não?” Interrogavam em pergunta de retórica.

Os mais atrevidotes, em provocação, lá iam dizendo que desta não se livrava e só estava mesmo à espera de uma vaga lá em cima, nos anjinhos.

Vá-se lá saber a razão, a hora dele não chegou. Recuperou e, para espanto de todos, regressou à Parvalheira pronto a pegar no trabalho. Passado pouco mais de um mês já conduzia o trator e voltava a pegar na enxada e na tesoura para podar umas videiras na latada junto da sua casa que, como se sentissem a sua falta, pareciam desfalecidas e sem cor.

E ele, como tivesse renascido e passasse a dar mais valor à vida, voltando à sua rotina costumeira, como em agradecimento ao “Altíssimo”, até deixara de dizer palavrões escabrosos sempre que botava faladura a acompanhar uma frase - isto depois de se saber que dizer asneiras faz bem à saúde. Aparentemente, era um novo homem, recauchutado, que, largando o semblante pesado e sorumbático, se tornara mais simpático e prestável. Em suma, era uma pessoa mais feliz do que nunca.

Estava sentado no parapeito do chafariz. A sua face descaída, enrugada e macilenta contrastava com o dia soalheiro, com um Sol traquina e esfuziante de alegria, e com o chilrear dos passarinhos. Parecia carregar nos ombros todo o peso dos dias negros e todos os males do mundo. Os seus olhos, sem brilho, eram como lâmpadas apagadas.

Cumprimentei-o e bati-lhe levemente nas costas, como se este último gesto pretendesse significar uma invisível dose dupla de ânimo, como se eu não tivesse reparado na sua angústia e prostração.

- Então…? Como é que vais? Estás com bom aspecto... - abri a conversa com salamaleques.

- Ai estou, estou… Deves estar a precisar de óculos… ou então queres enganar-me – pareceu ralhar comigo, incomodado. E prosseguiu.

Estou todo fodido, pá! Depois de estar às portas da morte há cerca de um ano atrás, há uns meses tive um AVC, Acidente Vascular Cerebral. Estive outra vez à entrada do túnel. A vida é uma merda, pá! Que mal fiz eu, para merecer isto? Há gajos que eu conheço que não há mal que lhe chegue? Porquê eu?

A vida é uma roleta, nunca se sabe a quem vai calhar. Ainda ontem um familiar meu afastado, o (…), morava em (…) não deves conhecer, andava a atar uns tomates na horta, sozinho, deu-lhe uma síncope, caiu e lá ficou. E até tinha lá o telemóvel… não teve tempo de o usar. Isto é alguma coisa?

- Deves ver as coisas de outro modo, não podes ver tudo escuro. Afinal, já estiveste, por duas vezes, para terminar a tua passagem e ainda estás cá. Tenta viver um dia de cada vez – mesmo sentindo-me idiota e sabendo que não acreditava na minha mensagem alegadamente optimista, titubeante, sem saber muito bem o que acrescentar mais, deixei-o entregue aos seus amargos pensamentos.


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