quarta-feira, 30 de setembro de 2020

UM OUTONO NA ALDEIA, COMO SEMPRE, NOSTÁLGICO

 

(Imagem da Web)




Assim, como neblina matinal, com passinhos de lã, o Outono, devagar, devagarinho, entrou sorrateiramente e, com toque delicado, empurrou o Verão para o ano que virá.

A chuva grossa e miudinha, como a desejar as boas-vindas a uma estação transitória entre o seco e o molhado, entre o frio e o calor, pareceu sorrir no meio de um riso acabrunhado e taciturno.

Está na hora de repor mais um cobertor na cama, retirar do guarda-roupas e das gavetas das cómodas o vestuário mais encorpado. As meias-mangas e a roupagem de algodão vão hibernar, pelo menos, durante seis meses.

As árvores de sombra, até há pouco totalmente cobertas por ramagem verde, progressivamente, começando no amarelo-torrado, vão ficar despidas para dar lugar ao milagre da substituição.

Começando agora a embalar a trouxa, as andorinhas, as aves lindas dos poetas, percorrendo milhares de quilómetros, preparam a partida para o Norte de África, onde, sem incerteza, o clima quente vai continuar.

Na minha povoação de infância, em Barrô, o tempo corre devagar. Sem a pressa e o ambiente enfadonho da grande cidade, com o citadino a correr para ter tempo para trabalhar e alguma sobra para a família, onde o Sol é apenas sentido por alguns na vertical, a aldeia, ensolarada e estendida transversalmente no espaço, parece transpirar ar-puro, vida, saúde e bem-estar.

Neste 30 de Setembro, quando a tarde cai, calma e serena, e a estrela maior do Universo se prepara para descansar lá longe sobre o mar, vamos encontrar o casal “Manuel” e “Gertrudes” - nomes inventados – de cerca de sessenta anos, a passar o milho no Erguedor, aparelho manual, muito antigo, que serve para limpar o milho das impurezas que o acompanham. Aposentado por ter sido sujeito a varias operações à coluna vertebral por esforçados esforços na terra dura, o “Manel”, a arfar e com o suor a escorrer pela fronte, dá à manivela que, movendo a roda de grandes pás, vai fazer vento e separar o “joio” do fruto.

Gertrudes, que há muitos anos trocou um emprego rotineiro e sem sabor pela lavoura, mais ágil, vai apanhando o fruto amarelo do chão para um balde plástico de vinte litros e vai despejando na boca-aberta da máquina agrícola. Como se fossem polvilhados do Céu, ambos, marido e mulher, estão camuflados pela fuligem.

Como outras jornadas cheiinhas desde há quinze dias para cá, o dia foi extenuante. Começou pelo acordar ao toque de “Avé-marias”, pelas seis e trinta da manhã, na torre-sineira do povoado. Depois de um pequeno-almoço frugal, era preciso aproveitar os raios solares “prometidos” na véspera, na Terça-feira, pelo Instituto Português do Mar e da Atmosfera, para secar o milho na eira. As previsões, consultadas diariamente pelo agricultor, são um instrumento fundamental para projectar a semana. E Quinta-feira vai chover. Não havia tempo a perder para secar, limpar e arrumar os grãos amarelos nas grandes arcas de madeira, herdadas dos ancestrais. Até a sesta, período de descanso após o almoço, sempre cumprida religiosamente, neste dia de grande pressa, não pode ser cumprida. “hoje vamos para a cama cedo, Gertrudes! Estou que nem posso!”, enfatizou Manuel, depois de levar o braço atrás das costas e massajar as cruzes.

Desde há um mês para cá tem sido mesmo uma canseira. Primeiro foi o cortar rente os “canoilhos” onde a massaroca vem agarrada. Depois veio a “descamizada” ou “desfolhada”, ao cair do dia, com a ajuda dos filhos, que laboram na cidade e, ao entardecer, regressam ao domicílio.

A seguir veio o separar o grão do casulo através de uma “malhadeira” mecânica ligada a um tractor, cujo dono é o antigo proprietário do último café que encerrou há meia-dúzia de anos e agora vai ajudando quem precisa dos seus serviços.

Depois, então, vem a fase do secar e arrumar a semente nas arcas para, durante os meses de carestia de pasto, poder servir de alimento aos animais ali ao lado, e que, num berrar sintonizado, clamam por atenção.

E sem darmos por isso, o crepúsculo, ao ralenti, foi-se instalando vagarosamente. O milho está todo arrumado. Amanhã já pode chover à vontade. A Gertrudes foi fazer o jantar. São agora 19h30 – só de pensar que ainda há um mês atrás a claridade se estendia até às 21h30 dá um arrepio de saudade, pensa para com seus botões o filho da terra.

As luzes públicas, que iluminam o negro alcatrão, como a anunciar a chegada, começam a piscar.

Como o jantar é sempre às oito (20h00), vai dar o seu costumado passeio para arejar as ideias. A passo cadenciado, reflectindo na vida e dando por acabado que a existência é demasiado curta para perder farrapinhos ou bocadinhos com coisinhas de nada, “Manuel” encaminha-se para a ribeira a uma centena de metros do velho campanário. Apesar da noite estar a estender o seu manto, no antigo lavadouro colectivo, ainda se encontra a lavar uns panos a mulher mais idosa da localidade. Com um meio-sorriso de saudação e a pergunta rectórica “ainda? Olhe que são quase oito”, o pensador caminhou mais vinte passos para frente, em direcção ao velho moinho, na margem da ribeira e agora abandonado como coisa imprestável e sem valor.

A velha represa comunitária, cuja água, durante os meses de canícula, serviu para regar o “Barreiro”, a horta, o celeiro da aldeia, está agora vazia. Por obrigação legal ligada a velhos hábitos de antanho, anualmente, em 30 de Setembro devem ser retiradas as comportas e liberada a água.

Por momentos, a planar sobre pensamentos retrospectivos, mesmo com o breu implantado, comparou ali a vida há dias atrás, com o coaxar das rãs e dos sapos, e agora, com o silêncio do fundo vazio, uma pequena regueira de água rodeada de lama teimava em caminhar para o mar.

Manuel”, olhando o Céu sem estrelas, deixou escapar: “Amanhã vai chover! Não se enganaram não...




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