segunda-feira, 29 de maio de 2017

O JULGAMENTO DO ESFAQUEAMENTO NO LARGO DA FREIRIA





Perante um colectivo de três juízes -obrigatório para processos respeitantes a crimes mais graves, isto é, com moldura penal superior a cinco anos-, realizou-se hoje no Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra o julgamento de Carlos Leonel Cardoso Gonçalves, que, em 11 de Agosto do ano passado, esfaqueou quase mortalmente um vizinho no Largo da Freiria.
Começo com duas ressalvas. A primeira, por ter sido arrolado como testemunha pelo tribunal -o que quer dizer que, como não presenciei os factos de per si, fui chamado para, com o meu depoimento do que observei e participei a seguir, ajudar a chegar a um quadro de verdade não visto por ninguém. A segunda, não percebo nada de direito, o que quer dizer que o que alego a seguir é na qualidade de cidadão imparcial que pugna por uma justiça mais justa e precisa enquanto instrumento social necessário para dirimir conflitos em total ou parcial satisfação das partes em confronto, no caso em apreço, Estado, representado pelo Ministério Público, e defesa de interesses do ofendido e agressor.
Para melhor se entender os factos, lembra-se que em 11 de Agosto de 2016, por volta das 14h00, o Carlos Gonçalves esfaqueou um vizinho, Ricardo Alves, junto à carótida por este, reiteradamente, provocar barulhos no edifício onde moravam os dois na altura. Como não houve testemunhas, não se sabe o que aconteceu em concreto.
O Carlos Gonçalves alegou em tribunal que foi o Ricardo que lhe teria batido à porta e lhe teria dado um murro e, em instinto de defesa, teria puxado da navalha para se resguardar fisicamente.
O Ricardo Alves, pelo contrário, alegou que ouvindo vários pontapés na porta da casa de sua mãe, onde se encontrava a almoçar com a progenitora, veio à entrada e logo que abriu recebeu uma navalhada do lado esquerdo do pescoço, originando uma sua reacção de defesa materializado no murro subsequente.
Porém, há questões de relevo que urge compreender. A primeira, é a manifestação verbal de Carlos Gonçalves ao chegar junto a mim: “senhor Luís, chame o 112 porque eu dei uma navalhada no rapaz do primeiro andar. Não sei se o matei! Estava a fazer muito barulho -é todos os dias a mesma coisa-, fui pedir-lhe explicações e “passei-me”.
A segunda questão, a meu ver de interesse maior, é que o Carlos Gonçalves sofre desde a adolescência de Esquizofrenia e, para “além de se alimentar mal, há muito tempo que não tomava os necessários medicamentos”. Se por um lado, pelo arguido, a doença foi-me confessada em 2014 quando escrevi a sua história e a publiquei no jornal O Despertar, por outro, a assistente social que o acompanhava disse-me isto mesmo textualmente: que ele não tomava a medicação há muito tempo. Quando alertado para o facto pela técnica argumentava que “já estava bom e não precisava de ingerir medicamentos que lhe davam cabo do estômago”.
Esta inquirição, que a meu ver lhe poderia conferir inimputabilidade ou, pelo menos atenuar a sua culpa na agressão, só foi por mim referida no meu testemunho mas sem que lhe fosse dada a menor importância. Estranho? Talvez não...

QUEM NASCEU PRIMEIRO? O OVO OU A GALINHA?

Alegadamente, com uma acusação de “Ofensa à Integridade Física Qualificada” -com pena de prisão entre dois e dez anos- a balouçar sobre o arguido Carlos Gonçalves, o julgamento, ao longo de toda a manhã, decorreu morno e sem chama. Sem tomar em conta o “debilitado” estado de saúde psíquica do acusado à hora do crime e que poderia, ou não, ter alterado a sua noção de interpretação, o tribunal passou a manhã toda em busca de saber se primeiro surgiu a navalhada por parte do agressor ao ofendido ou um murro por parte da vítima e que teria dado origem à navalhada.
A pergunta que emerge é a razão de, deixando cair a inimputabilidade pela esquizofrenia, os advogados de Carlos Gonçalves terem optado por tentar provar o excesso de legítima defesa? Pode interrogar-se sim, mas não se entende -digo eu na minha santa ignorância. Pode até tentar compreender-se que a escolha poderia ser uma alternativa para tornar a pena mais leve, mas continuo a teimar que foi uma má escolha estratégica e o resultado é que o arguido, em face de alegações não relevadas por uma defesa ineficaz, ficou muito fragilizado.
O representante do Ministério Público pediu entre 6 a 7 anos de prisão efectiva. A seu ver, perante a argumentação da defesa de invocar excesso de legítima defesa, a agressão, embora a lei protegesse o arguido, entrava dentro do homicídio tentado -com uma moldura penal ainda mais severa.
Sem querer parecer um anjo da desgraça, até por que não temos conhecimento do processo, é de prever que Carlos Gonçalves vá sofrer, pelo menos, uma condenação de prisão entre quatro a cinco anos.
É de prever que não irá haver recurso do acórdão que será lido no próximo 09 de junho, pelas 14h00.
Poderá falar-se de erro judiciário? Se calhar não. A justiça nunca erra, sobretudo se os meios de defesa do arguido forem escassos.
Quando um homem é pobre, diz-se, até os cães alçam a perna e lhe mijam nos pés.

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