sábado, 20 de maio de 2017

EDITORIAL: A ANIMADA MARCHA FÚNEBRE COMERCIAL





Eu gosto muito da minha cidade. É uma urbe média, encastrada entre o Porto e Lisboa, com cerca de 100 mil habitantes. Como todas as cidades de dimensão média ou pequena, na sua idiossincrasia, é peculiar. Quase diria que o que se passa na lusa Atenas é transversal às suas congéneres.
Até ao virar do milénio, pela atracção humana que desencadeava sobretudo no consumo interno, era o centro do centro de Portugal. Nesta altura, pelo troar dos passantes em movimento contínuo, a Baixa, nas suas ruas, estreitas ou largas, detinha um barulho muito próprio que lhe conferia uma segunda identidade. Nas vielas mais manhosas onde um odor putrificado a pobreza invadia tudo em redor havia roupa estendida nas janelas a mostrar que mesmo nos antípodas mais esclerosados há sempre vida. Entre os moradores das largas avenidas e ruelas estreitas existia um respeito mútuo não escrito mas declarado num convívio tácito. A Baixa, entre doutores, estudantes e trabalhadores, fervilhava de gente de todos os extratos sociais.
Nesta época, qualquer entrada de porta para instalar um pequeno negócio, pela transmissão, valia milhares de contos. O imobiliário, com um preço fora do bolso comum, era sagrado e quase só alcançável aos mais ricos. Pelas dificuldades monetárias de acesso, ser comerciante não era para qualquer um. Para o ser, maioritariamente, tinha de passar muitos anos a atender público atrás de um balcão como marçano e, calcorreando noites e noites em claro, estar disposto a abdicar do amor da sua família e a dedicar-se por inteiro ao seu cliente.
A partir de 2000, com promessas de uma nova felicidade inscrita numa nova moeda, tudo o que eram coisas simples e vulgares deixaram de ser atractivas e foram perdendo interesse. Era o tempo da substituição do pequeno pelo grande. Era a época das grandes obras faraónicas.
No Comércio a alegada (r)evolução estava em marcha. Ao mesmo tempo que com a mão direita se assinava o licenciamento de muitas grandes superfícies comerciais, com a esquerda, para mostrar equidade e que os deuses, materializados no governo central e local não dormiam, distribuía-se dinheiro a rodos pelos pequenos comerciantes através do PROCOM, URBECOM E MODCOM, programas de ajuda ao comércio com o beneplácito da União Europeia. Com esta medida de política económica, os comerciantes endividaram-se e, para além das muitas remodelações, abriram ainda mais lojas no centro histórico -se não todos, a maioria destes mercadores que contratualizaram estes projectos faliram ou encerraram portas ao longo destes cerca de vinte anos. Foi um definhamento contínuo.
Com muitos e maiores centros de venda, o consumidor da cidade, outrora coesa e equilibrada na oferta e na procura, foi-se espartilhando e dividiu-se pelas várias ilhas comerciais do burgo. Este consumidor, sem ética, egoísta e abutre -que somos todos um pouco-, nada se importa com o que possa acontecer com o futuro da cidade. Por diversão, por comodidade, dará tudo na forma de voto no candidato que esteja disposto a mais proporcionar. Para comprar mais barato, passará por cima de amizades ou laços familiares.
Como um rio a quem alteraram o curso de água, progressivamente a Baixa foi perdendo tudo -e nem a recente classificação de Património Mundial alterou a sua degradação contínua. Desde a beleza natural que o tempo, pelo desgaste natural, pelo abandono, na dinâmica e mudança dos costumes, faz apagar, desde o esvaziamento contínuo de habitantes fixados, que vão morrendo e não são substituídos por mais novos, até políticas de urbanismo catastróficas onde impera o gastar de milhões de euros em obras que para nada servem a não ser encherem o olho, a zona comercial continua a cair aos olhos de todos. Aos poucos, como corpo que se habitua a migalhas, o pequeno/pequeníssimo comerciante foi-se adaptando a este conta-gotas de apenas se alimentar para sobreviver. Por outro lado, o medo de amanhã acordar sem tecto foi fazendo dele um animal acossado e amestrado que, para além de não reclamar do castigo imposto, elogia e ama o seu verdugo. E dá origem a novos falcões.
Hoje, com muitos estabelecimentos encerrados e casas ocupadas por velhinhos ou vazias, um silêncio envolvente tomou conta das ruas estreitas e só é quebrado pelas muitas festas barulhentas que, em muitas iniciativas e cobertas com muitos milhares de euros, são realizadas para desviar as atenções. E a verdade é que os comerciantes batem palmas. Sem esta ovação geral de pantomina a mentira não avança. A Baixa está mesmo a mexer, dizem com ênfase. Ninguém se lembra -talvez por que não lesse- que a mesma técnica de lentamente morrer alegremente foi usada pelos regimes autoritários e fascistas nas décadas de 1930/40 e, passando o exagero comparativo, nomeadamente pelo terceiro Reich, na Alemanha. Seguindo a mesma ilusão de cartilha universal, todos caminham em direcção ao abismo, mas muito felizes e contentes.
Embora em circunstâncias diferentes, como a história se repete, aí estão novos apoios ao empreendedorismo muito parecidos com os distribuídos em finais da década de 1990, PROCOM e outros. A mensagem do embrulho é sempre a mesma: ajudar os pequenos investidores, desenvolver a cidade e criar emprego. Ninguém fala que, o que se pretende verdadeiramente é só retirar a inscrição de desempregados do IEFP, Instituto de Emprego e Formação Profissional. Ninguém está preocupado com a vida económica e financeira dos pequenos e pequeníssimos operadores. Nenhum destes vendilhões do templo quer saber se os que aceitarem estes novos pacotes de roupagem velha vão durar ainda menos e, com o seu desaparecimento, vão tornar a Baixa, e a cidade, ainda mais pobre do que já está. Subsidiar o empreendedorismo está (outra vez) na moda. É uma nova vaga, uma nova onda, que, pelas suas boas e generosas intenções, arrasta tudo e todos com objectivos pouco claros. O que se pretende está lá, é preciso é pensar.
Na última última segunda-feira, 15 de Maio, com muita pompa e maior circunstância, em sessão solene camarária, foi apresentado no Salão Nobre Municipal o Coimbra Invest -Regulamento Municipal de Apoio a iniciativas Económicas de Interesse Municipal. Trata-se de um Sistema de Incentivos ao Empreendedorismo e ao Emprego (SI2E) que, articulado através da CIM Região de Coimbra e no âmbito do Quadro Comunitário Portugal 2020, disponibiliza cerca de oito milhões de euros pelas pequenas e micro-empresas, para obras e equipamentos, desde que que os contemplados qualifiquem ou empreguem um ou mais inscritos no centro de emprego. O SI2E apoia investimentos até 100 mil euros desde que que se verifique a contratação de recursos humanos.
A animada marcha continua. Vale a pena pensar nisto? Hum... se calhar não!

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