Esta
noite o enorme e grosso vidro da montra das desaparecidas Galerias
Coimbra desfez-se em mil pedaços, que se derramaram sobre a Rua
Eduardo Coelho.
As causas estão
determinadas, mas se eu contasse assim tudo de rajada ficava sem
espaço para especular. E eu preciso de escrever. Assim sendo,
partindo do princípio que não sei nada, vamos conjecturar sobre o que
terá acontecido. A acção, na sua consequência, pode ser natural,
transcendental, ou até de mãozinha humana.
Na
origem do derrube, eventualmente, poderão estar causas naturais.
Senão vejamos: durante o período comum de sono até à madrugada
esteve um vento que empurrava tudo a “toque de caixa”. Logo, por
inerência, poderíamos concluir que o culpado reside na Natureza.
Por
outro lado, o causador do estilhaçar pode perfeitamente residir num
fenómeno transcendental. Já há muito que se temia que o vidro
gigante pudesse cair sobre a via pública durante o dia e ferir
transeuntes. Ora, acontecendo durante a noite, facilmente se chega à
conclusão de que poderemos estar perante um milagre dos Pastorinhos,
das aparições de Fátima -como se sabe, só falta a confirmação
de um fenómeno para a Comissão dos Teólogos poder levar ao
processo de canonização dos beatos Francisco e Jacinta Marto.
Por
outro lado ainda, pode andar ali intenção do homem, generalizando.
E porquê? E eu sei lá? Se aqui se adivinhasse tínhamos um
consultório aberto na Baixa e não escrevíamos gratuitamente, p'ro
boneco. Podemos aventar qualquer coisinha. Lá isso podemos!
Já aqui falei na “teoria das janelas quebradas”, tese da psicologia social de que
abandono gera abandono, desordem gera desordem. Ou seja, que um bem
decrépito, desamparado, exposto, gera na comunidade uma vontade de
“descarregar” nele um certo desprezo pelo imprestável que está
dentro de nós. Logo, por silogismo, poderia ter acontecido assim.
Mas também é verdade
que alguém, movido pelo excessivo amor aos animais, pudesse destruir
a vidraça para que um par de gatinhos, em liberdade, pudesse
circular entre a rua e o seu aconchego. Mais à frente explicarei
melhor esta conclusão.
UM
POUCO DE HISTÓRIA
O
prédio das Galerias Coimbra teve no seu seio uma das maiores
catedrais de comércio na Baixa de Coimbra. Isto antes de nascerem as cidades "low cost". Depois de, em 2010,
passar pela insolvência da firma Coimbra & Filhos, Lª, em 2011
o edifício foi adquirido por um comerciante chinês e com
financiamento atribuído pelo Millennium BCP. Em 2013, alegadamente,
por o negociante ter entrado em incumprimento com a entidade
bancária, o BCP vem a retomar as instalações como garantia do seu
crédito. E a partir desta data ficou entregue ao ostracismo do
silêncio de abandono.
Em Fevereiro do ano
passado, em vandalismo implícito, alguém arremessou uma pedrada e
provocou um buraco no vidro. Depois, progressivamente, o rasgo foi-se
alargando a toda a área de transparência e temia-se que a qualquer
momento se pudesse abater sobre quem circulasse na Rua Eduardo Coelho
ou sobre uns sem-abrigo que pernoitavam na lateral. Como os serviços
de Protecção Civil não ligassem grande coisa ao assunto, enviou-se
uma carta com aviso-de-recepção ao Presidente da Câmara Municipal e as grades de segurança foram
corridas para evitar males maiores.
Passado um tempo as grades que davam acesso aos pisos superiores do imóvel, mais uma vez,
apareceram forçadas e, novamente, passou a servir de alojamento local para dois sem-eira nem beira e a um casal de gatos. Ao lado de
uma frutaria e de um estabelecimento hoteleiro, convenhamos que o
cheiro não era muito agradável. Mas como somos um povo de “não
te rales que eu também não”, sem-abrigo, felinos e operadores
comerciais, todos conviviam alegremente. E a coisa continuou assim
durante meses.
Há cerca de três
semanas, a frente do edifício degradado apareceu com grades novas e
corridas de modo a impedir o alojamento humano.
Embora, manifestamente,
os técnicos que colocaram as grades tivessem sido avisados de que
havia gatos dentro da loja, pelos vistos, talvez por não terem sido
detectados, deixaram dois animais no interior. Claro que, mesmo
assim, a sobrevivência dos bichanos ficou assegurada não só por
existir um buraco no vidro -que lhes permitiam livre circulação-
como também a alimentação diária colocada de fora para dentro
pelos imensos defensores dos felídios -que não querem saber da
conspurcação ambiental. Mas é assim, é assim! O que importa é
que os gatinhos não passem mal.
TANTA
CONVERSA, MAS, AFINAL, O QUE ACONTECEU?
Ontem
à noite o vento uivava ameaçador e mal-disposto no Centro
Histórico. Em razão concreta, não se sabe porque aparentava
tamanha fúria. Podem haver várias motivações, aventando, uma
delas pode ser o facto do Presidente da República, Marcelo Rebelo de
Sousa, já ter vindo várias vezes à cidade e ainda não ter
colocado os pés na Baixa, e não ter dado nem ter recebido uns
beijinhos e abraços dos futricas cá da zona.
Prosseguindo,
em virtude do vento querer levar tudo à frente, o vidro da montra em
questão, por volta da meia-noite, deu em dar estalidos lancinantes,
mais agressivos que, por analogia, presumivelmente Ferreira da Silva,
o coordenador do movimento Cidadãos por Coimbra, teria emitido quando soube que o
estavam a atirar para canto na escolha de candidato à
autarquia. Vai daí, João Rodrigues, funcionário do BE 51, um
estabelecimento hoteleiro mesmo ao lado, vendo que a vidraça se
separou em duas, ficando a balouçar, e temendo que pudesse atingir
alguém, ligou para a Protecção Civil para que viessem tomar conta
da ocorrência. Estranhamente, ou talvez não se tivermos em conta
que também estavam em causa dois gatinhos, coitadinhos, aquela
entidade deslocou-se logo ao local e para que não houvesse sangue,
humano e animal, partiu o que restava do vidro. É certo que,
passadas quase vinte e quatro horas o resultado da quebra lá
continua no chão à vista de toda a gente, mas isso não importa
nada. O que interessa mesmo é que, pelo menos desta vez, respondeu
com eficácia.
Até agora não foi possível saber se os gatinhos estarão mais felizes. Pode e deve admitir-se que sim. E pela sua felicidade, naturalmente, vale tudo. Se entre o dano causado, de deixar os vidros ao abandono na via pública, e a imediata solução do fim em causa haverá proporcionalidade? Isso já é outra questão.
Até agora não foi possível saber se os gatinhos estarão mais felizes. Pode e deve admitir-se que sim. E pela sua felicidade, naturalmente, vale tudo. Se entre o dano causado, de deixar os vidros ao abandono na via pública, e a imediata solução do fim em causa haverá proporcionalidade? Isso já é outra questão.
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