quinta-feira, 21 de agosto de 2014

UM PROCESSO KAFKIANO

(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)



“Vinda do outro lado do mar, de Cabo Verde, decorria o ano de 2007 quando cheguei à cidade dos estudantes para estudar na Faculdade de Direito. Tinha 20 anos e trazia a bagagem carregada de sonhos. Quis o destino que me apaixonasse perdidamente por um rapaz de uma cidade do interior e quase vizinha de Coimbra. Com seria de prever, foi-se o curso e as imaginações passaram a incidir no pequeno ser que crescia no meu ventre. Estava muito feliz. Para além de um companheiro, ganhei também uma nova família já que, contrariando o meu temor de ser repelida por ser negra, parecia ser muito querida pela minha futura sogra. Amiúde me dizia que, pela minha forte personalidade, eu tinha sido um anjo bom que apareceu nas suas vidas para salvar o filho do álcool e do tabaco. Nasceu a minha pequenina e fomos morar para a terra do meu amor. Depressa me apercebi do controlo cerrado da mãe do meu marido, sempre a querer meter a colher na nossa intimidade, e que ele, frágil de condição, não se revelava para defender a nossa relação. Depressa vi que o melhor seria retornarmos a Coimbra e aqui arrendar uma casa. Mas nem assim a mulher, como espírito maligno de encosto, descolava da nossa privacidade. Recorrendo algumas vezes a ofensas e ameaças à minha pessoa, a relação foi esfriando e contagiando tudo à volta. Depressa o amor lindo que nos ligava, a mim e ao filho, se derretia como gelo fustigado pelo Sol. E separamo-nos. Durante dois anos nem o pai da minha criança nem a sua família quiseram saber se eu podia alimentá-la, nunca se preocuparam, ou se estava bem de saúde, até porque sabiam que ela tinha nascido com problemas de desenvolvimento neurológico e que precisava de cuidados continuados.
Como tenho visto de residência, há dois anos pedi autorização para ir a Cabo Verde acompanhada da minha filha. Foi então que o Tribunal de Menores convocou o meu-ex-companheiro. Para minha surpresa, diante do juiz alegou querer ficar com a nossa filha à sua guarda. Perante o manifesto descuido anterior de desamor paternal, o magistrado negou a pretensão, estabeleceu visitas e impôs uma pensão de alimentos. Como naturalmente procuro que a minha filha cresça com o afecto de pai e mãe, cumpri sempre e até fui facilitando para que o meu bebé se fosse adaptando ao pai. Há dois anos tive um pequeno sobressalto. Com o meu consentimento, levou a nossa filha para férias e, durante uma semana, não me atendeu o telemóvel. Depois de alegar que o tinha perdido, veio a segunda inquietação: a minha ex-sogra propunha pagar-me para eu prescindir dos meus direitos maternos. Por todos os meios e mais alguns, tentou convencer-me para que a sua neta ficasse a morar de vez na sua casa. Logicamente que neguei tal vontade. Só quem carrega carne da sua carne na barriga sabe o quanto isto pode ser insultuoso. Mas deixei passar.
Com o acordo do Tribunal, no ano transacto a minha menina foi passar quinze dias de férias com o pai e os avós. Quando regressou começou a ter incontinência urinária. Achei normal. Quem sabe a mudança de ambiente pudesse ter implicação, pensei. Como se prolongou, fui ao médico pediatra e este especialista confirmou de que nada de anormal se verificava. Mesmo assim receitou uns comprimidos e recomendou que desse menos líquidos à noite. Na continuação, ora desaparecia ora regressava a intemperança. Por alturas do último Natal, mais uma vez, a avó voltou à carga para eu deixar ir a neta viver com eles. Argumentava que a menina teria um futuro melhor na sua companhia do que no meu. Invoquei que, à custa de muito trabalho e esforço, tenho a minha casinha e, mesmo vivendo só, a menina está muito bem acompanhada e frequenta o infantário na parte alta da cidade.
No último dia 31 de Julho vieram recolher a minha filha para ir com eles para férias. Ficou acordado que passada uma semana trariam a menina para eu poder aguentar a separação. Como não cumpriram, comecei a ser confrontada com desculpas esfarrapadas. Como sabia que a minha herdeira estava bem coloquei alguma preocupação mais afoita de lado.
Na última segunda-feira, dia 18, recebi a visita de dois agentes da PSP com uma notificação exarada pelo Ministério Público (MP). Dizia que em virtude dos indícios de abusos sexuais, descontrolo urinário, indicação de infecção urinária e comportamento de índole sexual, se afastasse a criança da área de risco e que a sua guarda seria concedida provisoriamente ao pai. Acrescentava ainda a intimação que a menor tinha indícios de ter sido abusada pelo companheiro da mãe. Assim, sem mais nem menos! Não procurou saber o MP que desde que me separei vivo sozinha. Não quis saber o delegado de que a menina se encontra com os avós desde 31 de Julho. Com a alegação jurídica da superior protecção da criança, como ficam os meus direitos de mãe ao saber que, se houve algum mau trato, a minha filha foi devolvida, presumivelmente, ao seio da agressão? Terá o delegado da Procuradoria da República noção da maldade e injustiça que me está a infligir?”

Sem comentários: