terça-feira, 12 de agosto de 2014

QUE PAÍS É ESTE?

(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)



Ele tem mais ou menos a minha idade, cerca de 57 anos. Conheço-o desde a minha adolescência. Foi sempre um electricista brilhante e um canalizador eficiente. Trata um qualquer quadro eléctrico por tu e canos de água por familiares. Esteve várias décadas estabelecido por sua conta e risco na cidade. Fosse lá por que fosse, porque quando um homem cai não é simplesmente o momento que cede sobre os seus pés. É toda uma conjuntura em cadeia que se vai avolumando até ao momento fatídico. O que me lembro, assim rapidamente e que contribuiu para a sua queda, é que uma grande firma dos lados de Leiria, há mais de uma década, faliu e com ela foram os créditos do meu amigo em mais de 20 mil contos. Ora, na moeda de hoje, cem mil euros para uma pequeníssima empresa é uma imensa fortuna e que pode levar ao ruir de toda uma vida  assente em pilares, profissional, familiar e social. 
Começou por falhar nas prestações da Segurança Social, no IVA e outros impostos às Finanças e, progressivamente, como areia a esvair-se por entre os dedos, foi perdendo tudo. Os filhos, com passado, presente e futuro de toxicodependência, fizeram o resto e foram destruindo alguma esperança que, porventura, existiria nas longas noites de insónia do meu amigo.
Como a desgraça é como o caruncho na madeira, vai comendo, comendo, onde entrar desfaz tudo, o meu chegado, para sobreviver, vai cravando um e outro e mais outro que desconhece a sua vivência arrastada. De tempos-a-tempos calha-me a vez a mim e cá me crava uns euros, embora de pouca monta nunca excedendo as dezenas porque eu já sei que o retorno é tão improvável quanto a água do rio, que passa num único momento, e voltar novamente a fazer o mesmo percurso e ao mesmo local.
Quando tenho um serviço de electricidade mais complexo, em que me parece implicar técnica e conhecimento, chamo-o. Ontem liguei-lhe para me verificar uma avaria.
Veio hoje. Subiu acima de um escadote e começou a desmontar um transformador a precisar de reforma –como eu, como ele, como tantos portugueses, como Portugal. Reparei que as suas mãos tremiam, oscilavam mais que um pêndulo de relógio estilo Moret. Quando chegou a uma parte que implicava olhar com mais precisão, arremessou: “ó Luís, não tens para aí uns óculos graduados de ver ao perto?”. Lá lhe arranjei um par de lunetas que tinha para aqui perdido e que não farão falta a quem já teria sido seu utilizador. Aparentemente deu para ele se desenrascar. Estive com a pergunta na ponta da língua para o interrogar se não tinha os óculos por incapacidade financeira, por o dinheiro não dar, mas voltei atrás. Mais que certo seria uma interrogação de retórica e apenas serviria para o humilhar ainda mais do que ele, presumivelmente, já sentirá nas suas tantas incapacidades diárias. Mantive a boca fechada. Viu o que tinha a ver. Afinal, para meu descanso, a coisa era simples. E não implicava uma substituição que temia. Declarou que precisava apenas de comprar uma pequena peça e que voltava amanhã. Já de saída e antes de transpor a porta, atirei: precisas de levar dinheiro? Respondeu que não, e saiu. Passados menos de dez minutos estava de regresso. Meio a titubear, com as palavras a serem mastigadas numa boca maltratada e que já viu melhores dias, como se dar a explicação que se seguia fosse mais difícil de entabular do que falar com o Presidente da República, aos solavancos e puxando de um papel, muito a custo, com os dentes a rilharem uns nos outros, proferiu: “desculpa lá! Tenho muita vergonha! Vês esta receita médica? Ora olha para o custo do medicamento. O preço é de 50 euros! Não tenho dinheiro que chegue! Por isso não o comprei. Já o deveria ter tomado há três dias! Desenrascas-me 20 euros?”


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