sábado, 1 de março de 2014

HISTÓRIAS CURTAS E MARCANTES

(Imagem da Web)


“De tempos a tempos apercebia-me de que do lado de fora da montra da minha loja ele olhava para mim, que estou dentro, atrás do balcão e à espera de quem não prometeu vir, e nada dizia. Não era um olhar igual a outro qualquer. Era um raio de súplica. Um grito surdo que parecia querer soltar-se das amarras. Como se aquele vislumbre quisesse dizer alguma coisa e desistisse a meio do caminho. Mas eu sou mulher e, em minha defesa calculista, fazia que não notava. E ele voltava novamente outro dia qualquer e permanecia com os olhos fixos na minha imagem. Até que há tempos reparei na sua vacilação, entre o falo ou não falo? E então cumprimentou: “bom dia!”. Cordialmente, respondi da mesma forma. É um homem sozinho, de meia-idade. Veste com simplicidade e reside por aqui, num qualquer quarto da Baixa. Certamente, carrega sobre os ombros o peso de muitos sonhos idealizados e algumas realizações falhadas. Imagino que a sua auto-estima, depois de subir a montanha e atingir o pico, desceu e estabilizou no sopé. Volta e meia passa aqui e, como sempre, saúda. Sinto cada vez mais que a pequena lojeca de bairro, como a minha, é muito mais do que um ponto de compra e venda. É um candeeiro de luz que ilumina corações tristes. É um centro de relações humanas. 
Agora, que já venceu a inibição, se, para além de mim, não estiver ninguém no estabelecimento ele entra e fala da sua vida: “desculpe incomodar, mas não tenho com quem conversar. Sinto-me só, sabe? Já tive tudo, já fui rico, muito rico, e agora vagueio por estas ruas e ruelas como cão escanzelado e sem dono. Gostava que a minha única filha, que está no estrangeiro e não me liga nenhuma, me olhasse pelo que sou, enquanto pessoa, e não pelo que já fui e deixei de ser. É muito triste a solidão!”


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