sexta-feira, 28 de março de 2014

LEIA O DESPERTAR...


LEIA AQUI O DESPERTAR DESTA SEMANA 

Esta semana deixo o textos "REFLEXÃO: A SOCIEDADE ESPETÁCULO"; "ESTA BAIXA ENTREGUE A SI MESMO"; "ROSTOS NOSSOS (DES)CONHECIDOS: O ADVOGADO DOS POBRES DIABOS"; e "O CARRIÇO NÃO CANTARÁ MAIS"



REFLEXÃO: ESTA SOCIEDADE ESPETÁCULO

Em Itália, num concurso para novas vozes, “The Voice”, apareceu uma freira a cantar espetacularmente e encantou o público e o júri presente. O vídeo está a correr o mundo.
Por um lado, imediatamente surge a pergunta: se acaso a religiosa se apresentasse sem uniforme teria o mesmo sucesso? Provavelmente passaria à eliminatória seguinte mas a sua prestação não sairia daquelas quatro paredes. Vivemos hoje numa sociedade que, a todo o gás, procura o diferente. Então se estiver uma farda no meio é tiro e queda. Adoramos, todos, o lado cinzento do conspícuo, do notável, daquele que, para além de ter o dever de aparentar, tem de ser obrigatoriamente respeitável. Há aqui um certo voyeurismo, um perseguir uma imagem que não existe. Um espreitar por detrás do espelho.
Por outro, imaginemos que esta cena se passava em Portugal. O que teria acontecido? Mais que certo, teria caído o Carmo, a Trindade e a eminência do bispo da diocese onde a servidora de Deus estaria vinculada. Somos um país muito sério. E com coisas sérias não se brinca, diriam os puritanos. O respeitinho é muito lindo. Ou seja, o desejo de que este espetáculo ocorra mantém-se, simplesmente às claras jamais! E não há coragem para furar o situacionismo. A gente gosta, mas vai contra a vontade popular –que curiosamente só existe em ilusão. Não pode ser! E não há discussão!
Ainda há dias ocorreu numa discoteca do país um strip-tease feito por um agente da GNR, fardado e com arma no coldre. Caiu a mácula na instituição da Guarda Nacional Republicana. Vozes da terra e do céu levantaram-se em coro contra a afronta. Como é de prever, o aventureiro militar, mais que certo, corre o risco de expulsão por, alegadamente, envergonhar a organização de força policial. Está certo? Não sei! Há sempre duas formas de avaliar o mesmo problema. Então do ponto de vista ideológico é fatal. Para a direita, sempre tão agarrada aos velhos costumes, é um escândalo sem precedentes. Queime-se o homem no pelourinho da insanidade! Para a esquerda, que adora o corte fraturante mas com calmex, é um “nim”, nem assim, nem o contrário. Aguarda-se serenamente as conclusões do inquérito, exclamarão com solenidade, sem se comprometerem e embrulhados na libertária impostura de sempre, no manto diáfano da nebulosa.
Para mim, que sou liberal e procuro não ser dissimulado e escrevendo o que penso, analisando este caso do militar GNR, creio que o homem se excedeu, sobretudo usando arma no show. No entanto, creio que se deve ter uma postura desvalorizadora do ato em si mesmo. À luz do bom senso, trata-se de uma rotura entre a tradição secular militar, estática e assente num conservadorismo hipócrita, e os tempos hodiernos, sujeitos à sua dinâmica natural e onde a liberdade individual tende a libertar-se de um espartilho que é meramente de encenação social. Saliento que não defendo o “vale tudo”! Pugno é por uma sociedade mais transparente e equilibrada, justa no julgamento do erro, e frontal na mudança dos costumes. Sobretudo, para que se não continue a proceder num fingimento ridículo. Abaixo o cinzentismo de todos nós. Que o vídeo da freira italiana nos faça refletir.


ESTA BAIXA ENTREGUE A SI MESMO

José Barata está inconsolável. A sua casa, na Rua da Fornalhinha, foi assaltada na noite desta penúltima quarta-feira. Nos últimos seis meses é a terceira vez. Nos três assaltos há um ponto comum, os gatunos procuram metais, sobretudo cobre. Deram-se ao vagar de, calmamente, desmontar o interior de um esquentador e levarem os tubos. Levaram também uma série de miudezas. O mais valioso desta intrusão foi um quadro a óleo, original, de Carlos Reis com as medidas, mais ou menos, de 25X40. Desapareceu também uma imagem de Santa Filomena. Nas vezes anteriores levaram as torneiras e até o contador de água. “Estou saturado disto”, diz-me em desalento. “Vivo em Lisboa, na Parede, e venho cá várias vezes ao mês e ultimamente deparasse-me este quadro de destruição. Já me rebentaram a porta várias vezes. Desta última foi com um pé de cabra na zona das dobradiças. Comuniquei sempre as ocorrências à PSP. Os anteriores assaltos foram arquivados por falta de provas. Este último, já sei, vai ter o mesmo destino. Quando interrogo a polícia pela falta de vigilância respondem-me que não têm meios. E os nossos valores? A nossa segurança? Como é que é? Para que pagamos impostos sobre o património? Se não fossem as minhas memórias…”

E DA LONDRES NADA?

A sapataria Londres, situada no rés-do-chão do mesmo edifício, encontra-se encerrada, à ordem do tribunal e por motivo de falência do comerciante, há cerca de 6 anos. José Barata lamenta a morosidade do processo judicial. “Veja bem que o meu inquilino fugiu sem me pagar as rendas de um ano e já em atraso. Como se fosse pouco, tenho de aguentar este tempo todo sem poder aceder ao que é meu. Mais, mas como proprietário sem direito à posse, continuo a ser responsável pelas obrigações decorrentes da loja. Ainda agora, para impedir a ocupação selvagem por sem-abrigo, tive de colocar um painel em chapa que me custou 500 euros.
É assim que se procura revitalizar o Centro Histórico? Um proprietário, em face de uma insolvência do inquilino, merece algum respeito?”. Interroga o dono do imóvel.

A CASA DAS AMÊNDOAS


Continua José Barata, “na década de 1930, quando nasci, os meus avós exploravam a Casa das Amêndoas, aqui, ao lado, na Rua Eduardo Coelho, número 26, onde é agora a Sapataria Trinitá, do senhor Quirino. Tenho uma ternura muito grande por esta zona, sabe? Andei por lá de gatas e foi lá que aprendi a dar os primeiros passos. Sabe que ainda conservo na minha mente o cheirinho da amêndoa torrada, como se fosse hoje? Se não fossem estas recordações já tinha ido embora há muito tempo. Sinto-me impotente. Estou farto de ser tratado pelo Estado como coisa!”





ROSTOS NOSSOS (DES)CONHECIDOS: O ADVOGADO DOS POBRES DIABOS

 Lembro-me muito bem dele no início da década de 1980. Nessa altura, conservava a mesma timidez e contenção no falar –como hoje- e, naturalmente, tinha melhor aspeto físico. Para além de ser mais novo apresentava-se sempre de fato e gravata como qualquer causídico. Hoje o tempo, como castigo ou não, parece ter passado por cima da sua pessoa e agora já só resta o mesmo sorriso de menino, o ar de bom samaritano, e o falar calmo e mais espaçado, como se procurasse as palavras no éter. Recordo bem o então advogado Rui Fernando de Mesquita Figueiredo, o doutor Mesquita como era conhecido na zona da Sé Velha, na Alta da cidade. Era uma espécie de solicitador dos mais carenciados que, quase sempre com um “grão na asa”, nos fazia lembrar o doutor Ezequiel Prado, da novela Gabriela, Cravo e Canela. A troco de nada, ou ressarcido tantas vezes por pouco mais do que uma cerveja, defendia todos. Estou convencido que nunca teria ganho dinheiro com a advocacia. Se calhar, por andar amiúde abraçado ao deus Baco a saúde, quem sabe por ciúmes, não lhe perdoou e há poucos anos teve um AVC, acidente Vascular Cerebral. Mas como a natureza compensa quem carrega humanidade, recuperou parcialmente e podemos vê-lo tantas vezes a cruzar-se connosco nas ruas largas. Vamos saber mais do doutor Mesquita. Fale, apresente-se, senhor doutor:
“Nasci em Coimbra há 79 anos –como curiosidade, ontem, dia 27, celebrei o meu aniversário. Entrei na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra em 1953 e, juntamente com a minha mãe, fui morar para a Rua dos Coutinhos. Em 1958, já licenciado fui exercer para Moçâmedes e Novo Redondo, em Angola. A minha mãe continuou por cá na mesma morada. Por lá, em terras africanas, fui também professor do Ensino Técnico –ensinava as cadeiras de direito, no Curso Comercial. Foi o melhor tempo da minha vida! Quando se deu a independência, em 1974, regressei novamente a Coimbra, à Sé Velha, à Praça Vermelha como era então conhecida. Nunca me meti em política. Sempre estive alheado. Era respeitado por todos. Sempre tratei bem toda a gente. Bebia um copo com qualquer um. Talvez por ser formado e ser, de certo modo, o advogado dos pobres, fui poupado algumas vezes. Na cidade, tive escritório na Avenida Fernão de Magalhães e na Rua da Sofia. Nunca ganhei dinheiro a advogar. Dava apenas para as despesas.
A minha mãezinha morreu já há muitos anos e larguei tudo o que me recorde álcool. Deixei também de exercer advocacia há cerca de uma década. Atualmente, estou a ser acompanhado no Centro de Dia 25 de Abril, no Ateneu de Coimbra. Tratam-me muito bem. Ainda ontem me deram banho porque já não posso. Os seus trabalhadores são o meu Anjinho da Guarda. Tenho familiares mas estão muito longe. Se não fosse o Centro de Dia não sei o que seria de mim! Recebo de Reforma 369 euros. É pouco! Pouquíssimo, se comparar com a verba que eu ganhava em África e quando trabalhava aqui. Está tudo bem para mim. Não me enervo! Estou em paz com o mundo! Só quero saúde, descanso e bom trato. E mais nada!”


O CARRIÇO NÃO CANTARÁ MAIS

 Na semana passada, num acidente deveras estúpido, faleceu o nosso amigo Joaquim Carriço, de 67 anos. Se toda a morte é trágica e sinónimo de dor para quem fica, mais o é ainda quando o finar de alguém, no derradeiro estertor, ocorre com grande sofrimento de impotência de quem o presencia e num cenário completamente improvável.
Com mais dois amigos, estava à pesca na Costa Nova. Por volta do meio-dia, pegou numa sandes e três cervejas –uma para cada um- e deu um dentada no pão. Engasgou-se e sentiu-se sufocar. Perante a incapacidade e o desespero de evitar um fim anunciado, Rui Alves, um dos seus acompanhantes e que tudo tentou para o fazer voltar à normalidade, apertando-lhe o peito e tentando expulsar o pão da sua garganta com massagem cardíaca, não conseguiu evitar a fatalidade e o Carriço exalou o último suspiro nos seus braços. Chamaram o INEM mas, segundo as declarações desta testemunha, “os serviços de emergência só chegaram 25 minutos depois. Ao que parece trocaram o endereço. Os bombeiros chegaram primeiro que os cuidados médicos. Ainda nem estou em mim. O meu melhor amigo morreu nos meus braços e sem que eu pudesse fazer alguma coisa! A vida é muito injusta, carago!”
O Joaquim trabalhava como odontologista, com consultório no Largo das Ameias, e, pela sua dedicação, era uma presença importante na Baixa onde detinha muitos amigos. Para além de tudo isto era meu vizinho. Nos Carvalhais de Cima, não se ouvirá mais a voz grave e melodiosa do Carriço a cantar o fado. Desde os seus amados cães até aos passarinhos do seu quintal, e sobretudo por todos nós, os seus confinantes que o estimávamos muito, vamos sentir a sua falta. Descanse em paz, meu amigo.



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