segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

EDITORIAL: FEIOS, PORCOS E MAUS






Hoje, com a globalização e pela agressiva manipulação
das necessidades pelas redes sociais, o consumidor,
ainda que fragmentado em massa abstrata, é a
máquina insaciável que, em busca de novidade
e de festa, num canibalismo sem precedentes,
tritura tudo à sua volta.”

A semana passada, mais propriamente na quarta-feira, o Diário as Beiras anunciava IKEA pode trocar Coimbra pela Figueira da Foz”, ou seja, que preterindo Coimbra, a administração da multinacional sueca poderia escolher a praia da claridade para se instalar. Embora dois dias depois, na sexta-feira, o jornal viesse desmentir a sua própria notícia -”IKEA não abre nem em Coimbra nem na Figueira”- a querela disparou nas redes sociais com acusações directas para a Câmara Municipal e para os comerciantes da Baixa de Coimbra.
Antes de prosseguir, gostaria de deixar uma ressalva: embora seja parte interessada -já que exerço uma actividade comercial na Baixa-, vou analisar esta questão com objectividade, independência, justiça, seriedade e, sem parecer fazer de advogado seja de quem for, tentar construir uma crónica que sirva para reflectir sobre um assunto que, a cada dia que passa, se torna mais urgente debater em profundidade.
Antes de explorar de per si as queixas que cada utilizador, em agremiação e individual, endereça ao grupo profissional do comércio e à entidade municipal, creio, vale a pena especular sobre o que escreveram e o que os motiva a despejarem, com elevado grau de azedume, toda a sua frustração e culparem por inteiro, por um lado, os comerciantes do estado calamitoso desta parte baixa da cidade, por outro, o município por incapacidade de conseguir fixar em Coimbra a marca da cadeia de móveis descartáveis.
Comecemos por ler os comentários:

O IKEA, farto de esperar, olha com interesse para a Figueira da Foz. Aqui instalam-se Cidadunzas e sonha-se com aeroportos internacionais

Mais uma vez, Coimbra a ser posta de lado pelos seus desgovernantes locais. Perante isto, só resta ao vetusto Presidente do Município de Coimbra e Presidente da Associação Nacional de Municípios, um caminho que é a demissão! Chega de atrofio e sufoco camarário e das desgraças do PSD, CDS, PS e CDU, em Coimbra!”

    Enquanto isso os que realmente querem comprar moveis no IKEA vão deixar o dinheiro a outras cidades. Enquanto acharmos que é preciso ajudar o comercio local, quando nem ele se ajuda a si próprio, Coimbra continuará na cepa torta com com níveis elevados de desemprego. Sim, porque não são as lojas do comercio da baixa que vão dar emprego a tanta gente. Eu vou continuar a ir a Matosinhos
    comprar no IKEA, já que por aqui não encontro nada do género”
Confesso que esta lengalenga do comercio tradicional já começa a cansar. Caramba, acordem! Ponham os olhos noutras cidades, e deixem de estar à mingua das ajudas destes e daqueles e a achar que todo o mundo está contra o comércio tradicional. E para que conste faço compras no comércio tradicional e vou ao mercado.”

Não podemos ter aqui nada, porque com o já se viu, dá cabo do comércio local. Enfim!”

Coimbra deve criar infraestruturas para atrair grandes clientes. Essas empresas vão criar riqueza postos de trabalho, baixar o desemprego. É urgente uma mudança de política que faça as empresas escolherem Coimbra”

A estreiteza de vistas dos comerciantes de Coimbra impressiona-me sempre e não tenho dúvidas que a par da Câmara são responsáveis pela decadência em que esta está cada vez mais a cair.

Enquanto o disco tocar assim dificilmente deixamos de ser uma aldeia em ponto grande!”

Os comerciantes de Coimbra (fechados no seu espírito empresarial da década de 60) lá terão de continuar a ver os consumidores a irem a Loures ou Matosinhos.”

É mesmo isso. Coimbra parou no tempo e os comerciantes também. Eu também vou continuar a ir a Matosinhos já que em Coimbra o que há neste campo é fraco ou não existe mesmo.”

O que mudou foi a sociedade, hoje a minha filha com poucos cliques compra coisas de qualquer parte do mundo em meia dúzia de segundos, a com a rede de transportes que Portugal hoje tem para a maior do País, em menos de duas horas colocamo-nos a partir de Coimbra em qualquer dos outros grande centros urbanos. Por isso não querer algo aqui porque vai prejudicar o comércio local é uma enorme falácia, eu e muita gente não deixa de comprar coisas no Ikea porque não há em Coimbra.
(…) Goste ao não goste, os comerciantes da baixa se nos querem lá, terão que nos tratar bem, ter variedade, qualidade e horários flexíveis por que se não vamos a outro lado, oferta é que não falta aqui em volta de Coimbra. (…) Pela idade que tem já devia saber que o problemas dos comerciantes não dizem nada aos clientes, eles querem é ser bem atendidos (…)”

O RESSENTIMENTO E A POLÍTICA PARTIDÁRIA

Não é preciso ser licenciado em sociologia para verificar que nestes comentários estão envenenados por dois factores: o político partidário, endereçado à Câmara Municipal, e o ressentimento, no concernente aos profissionais de comércio. Se o primeiro até se compreende relativamente bem, já que o homem, socialmente, é um bicho político e a ideologia misturada com partidarismo ofusca-lhe completamente o discernimento, já o segundo, o sentimento despeitado contra os profissionais de comércio, custa a entender. Mas, com esforço, até se chega a perceber. Claro que, para se alcançar, é preciso especular sobre o que está por trás deste comportamento:

Historicamente, com maior intensidade a partir das teorias marxistas no terceiro quartel do século XIX, o comerciante foi sempre visto pela comunidade, sobretudo pelo comprador, como um rentista (que vive de rendas), um explorador, um parasita social que se alimenta da mais-valia, excedente das receitas sobre as despesas. O respeito foi sempre “imposto” pela sua posição validada pelo sucesso capitalista que, pela oferta de emprego, concessão de empréstimos a juros, contribuição choruda para partidos em campanhas eleitorais, sempre estabeleceu uma certa subserviência quer do cidadão comum, quer do poder instituído pelo sistema.
Atente-se que, a atestar esta tese de venerar por obrigação em relação directa com o estatuto, estão os recentes desaparecimentos do nosso mundo de grandes empresários com Belmiro de Azevedo e Américo Amorim e outros que, nas exéquias, tiveram homenagem e quase honras de Estado. É verdade ou não que o leitmotiv, o motivo condutor, que une todos os empresários, grandes, médios, pequenos e pequeníssimos, é o mesmo? Sabemos que o lucro é o horizonte-comum que os liga. Ora, por conseguinte, porque razão são uns idolatrados, os grandes, e outros, os pequenos, são renegados? Será somente o sucesso a razão directa para a vassalagem? É óbvio que sim! Penso que fica também claro o desprezo para os “varridos”, aqueles que insolventes partiram sem nada, e o notório ressabiamento para com os resistentes, os que, num anonimato que veio para ficar, com enormes dificuldades se arrastam pelas vilas e cidades do presente.
Contrariando outros tempos, em que as lojas eram o motor de revitalização dos lugares habitados e o consumidor, o cliente, era o combustível que fazia funcionar a máquina, nos nossos dias e desde há cerca de duas décadas, inverteu-se o conceito. Hoje, com a globalização e pela agressiva manipulação das necessidades pelas redes sociais, o consumidor, ainda que fragmentado em massa abstrata, é a máquina insaciável que, em busca de novidade e de festa, num canibalismo sem precedentes, tritura tudo à sua volta. Sem consciência social, esta molhe humana está a marimbar-se para a desertificação do interior do país ou dos centros históricos das cidades -cuja essência de causa é a mesma- e busca apenas o seu interesse narcisista. Dêem-lhe festa de romaria, inovação e preços ao desbarato e tudo está conforme as escrituras da nova doutrina consumista. Quer por parte de instituições político-partidárias, quer por parte de desabafos que por vezes se ouvem, ninguém acredite em lamúrias derramadas em lágrimas de crocodilo sobre o esvaziamento da Baixa de Coimbra, assim do género: “ai que pena isto estar assim! Está tudo fechado!?! Quem viu esta zona e a vê agora! Gosto tanto da Baixa!
Aos olhos de muitos, talvez a maioria, que se esqueceram da sua origem humilde e da memória dos seus ancestrais que trabalharam no comércio, aqueles que por cá continuam, passando o exagero da frase, são “feios, porcos e maus”! 

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