sábado, 10 de fevereiro de 2018

BAIXA: NA INDIGÊNCIA TAMBÉM SE DISCRIMINA





Foi há cerca de um ano que deixei de ver o Cadaxo. A Praça do Comércio era o seu pequeno mundo. Rodeado de pombos, a quem distribuía migalhas certamente trazidas da Cozinha Económica, sentado num banco de madeira ou nas escadas da Igreja de São Tiago, era ali o seu quartel-general. Apareceu por cá há volta de vinte anos. Como as andorinhas, de tempos-a-tempos, partia em busca de outro clima mais quente, ou para fazer uma desintoxicação ao álcool. Retornava sempre ao ponto de partida. Era um sem-abrigo. Um rosto nosso (des)conhecido que vagueava entre nós. Sempre com histórias mirabolantes para contar. Cada um com um percurso de vida impressionante. Numa sina previamente anunciada, quase sempre morrem sozinhos.
Desta vez o Joaquim Cadaxo não voltou. O que lhe teria acontecido? Teria morrido? Se foi assim, até na morte se cumpriu a tradição: ou seja, se em vida foi um pária, para não variar, na hora do último acto de corpo presente ter-se-á seguido um enterro no maior anonimato. Não é a primeira que escrevo sobre a profunda discriminação que os indigentes, os acantonados da vida sem família, deveriam merecer algum respeito por parte das autoridades. No mínimo, tinham obrigação de informar a comunidade do seu falecimento. E para isso, tal como os ditos “normalizados”, era fazer anunciar o seu desaparecimento na sua área de convivência. A falta de informação de pessoas próximas é redundante e marca toda a diferença no seu sepultamento. Havendo conhecimento do falecimento, qualquer amigo ou conhecido pode contactar uma agência funerária e accionar uma cerimónia fúnebre com dignidade para o finado. Sendo o morto pensionista, a Segurança Social suporta o custo de um funeral mínimo. Tanto quanto julgo saber, sempre que um destes desprezados da vida se vai e não aparece nenhum familiar ou outro, o hospital -quando eles se finalizam lá- com uma cerimónia simplíssima, encarrega-se das exéquias. Pode até parecer que o que estou a escrever não interessa nada. Pensarão alguns, afinal se em vida ninguém lhe ligou patavina, o que importa o acto formal na morte? De facto, até porque é muito mais cómodo, poderemos todos pensar assim. Acontece que, a meu ver, para estas pessoas que em vida foram abandonadas, deveria haver por parte das autoridades um reforço da dignidade no último acto inter-vivos. Se a Constituição da República Portuguesa (CRP) prescreve que são “Tarefas Fundamentais do Estado” “Promover o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efectivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais” -Artigo 9º, alínea d) da CRP-, porque esquecem estas pessoas? Bem sabemos que, na sua curta existência terrena, é muito difícil orientar estes sujeitos, mas, ao menos na morte, atribuamos-lhe a perdida dignidade de pessoa humana.

CURIOSO, ATÉ NA MISÉRIA HÁ DESIGUALDADE

Numa crónica assinada por alguém que não recordo o nome, na semana passada, em todos os jornais locais, foi defendida a ideia peregrina de fazer perpetuar a memória do “Carlitos popó” no Largo das Ameias, na Baixa. Para quem não sabe, o “Carlitos” foi uma personagem típica, carismática, com deficiência, uma rosa brava num jardim humano formatizado por iguais, que durante mais de meio-século percorreu as pedras milenares da zona histórica. Era também presença assídua na Procissão da Rainha Santa.
Como ressalva, sempre considerei o “Carlitos” como pessoa em vida e, tal como realizo sempre com outros que conheça e que andem por aqui, faço sempre questão de estar presente no seu funeral. Instituo isto porque entendo que se, enquanto são vivos, lhe dou palmadinhas nas costas, na hora da sua derradeira partida devo ter a mesma prossecução comportamental. Mas, sublinho, nesta homenagem final, tudo acaba aqui.
Quero dizer o quê com este arrazoado? Que, com todo o respeito pelas iniciativas particulares de cada um, não me convidem a colaborar em exageros. E a cidade é peculiar em excessos a homenagear “cromos”. Relembro que o “Taxeira”, um figurão popular entre a academia nas décadas anteriores a 1980, está memoriado numa rua da cidade. Posso não ser unânime, mas ninguém me tira da cabeça que estamos no campo do absurdo.
Portanto, pelo exposto, está de ver, numa desigualdade gritante para uns vai tudo, para outros, mais anónimos e que não caíram nas boas graças de muitos, nem um funeral nobre têm direito.
Vale a pena pensar nisto?

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