terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

EDITORIAL: DESABAFOS E CLAMORES APANHADOS NESTA BAIXA DEGRADADA







Algumas vezes isolados, sem nada que o faça prever,
como autómatos, fazendo lembrar bonecos de corda,
viram-se devagar para trás e, dando uma volta sobre
si mesmo, começam a falar sozinhos:
Ai! O que aconteceu aqui? Está tudo fechado!
É uma vergonha! Quem viu esta rua antigamente...
Não pode ser! Foi o que fizeram os centros comerciais...
É a Câmara que temos!”

Na Rua Eduardo Coelho, nos últimos dias encerraram duas lojas e uma terceira, sem haver interrupção na actividade comercial, mudou de dona. Na entrada da antiga via dos sapateiros, junto à do Corvo, no espaço de vinte metros até à cortada para a Rua das Padeiras, há seis lojas encerradas. Então, para os mais atentos, assiste-se diariamente a um quadro socio-comportamental digno de registo. Os passantes, já com idade acentuada, entram na artéria, olhando à sua volta percorrem os primeiros dez metros, e estacam em frente ao Largo da Freiria. Algumas vezes isolados, sem nada que o faça prever, como autómatos, fazendo lembrar bonecos de corda, viram-se devagar para trás e, dando uma volta sobre si mesmo, começam a falar sozinhos: “Ai! O que aconteceu aqui? Está tudo fechado! É uma vergonha! Quem viu esta rua antigamente... Não pode ser! Foi o que fizeram os centros comerciais... É a Câmara que temos!” E, retomando o passo entretanto interrompido, vão à sua vida. Esta manifestação dos transeuntes é repetida ao longo do dia.
E poderíamos perfeitamente terminar a crónica por aqui. Mas não, sem pretender fornecer respostas objectivas, vamos tentar analisar esta conduta individual. O que levará as pessoas a agir assim? Complexo de culpa? Necessidade de apontar um culpado para a degradação comercial e paisagística? Catarse, evacuação das coisas ruins, purificação da alma por meio de uma descarga emocional provocada por um choque?
A Baixa da cidade, sobretudo para os citadinos que ultrapassaram o meio-século, esteve sempre presente na sua vivência, era uma espécie de projecção espiritual.
A Baixa até ao virar do milénio foi sempre o coração da cidade, era aqui que se sentia o pulsar da vida comercial, prestação de serviços e habitacional. Com a descentralização da urbe, pelo seu alargamento, o comércio e os serviços, privados e públicos, foram sendo transferidos para outras partes. Por seu lado, a habitação, pelos seus prédios centenários, sempre foi muito ineficaz na falta de conforto -essencialmente devido a rendas antigas de baixo valor que contribuíram para o gradual empobrecimento dos senhorios- e não se foi renovando. Em muitos casos, à medida que os seus habitantes iam morrendo, os locados iam ficando vazios por falta de dinheiro dos proprietários para realizarem obras. Hoje, não se sabe exactamente quantos prédios se encontram esvaziados e abandonados -creio, muitas vezes até desconhecendo a quem pertencem. Retirando o alojamento local com pessoas em trânsito e alguns estudantes, a maioria de residentes, muitos a viverem sós, será de um escalão etário elevado, tornando-os dependentes da assistência aos idosos. Por sua vez, as políticas para o centro histórico nos últimos vinte anos foram desastrosas. Basta lembrar o projecto do Metro Ligeiro de Superfície, com as suas ameaças de expropriação no canal entre a Rua da Sofia e o Largo das Olarias, que fez encerrar muitos negócios e expulsou várias dezenas, senão centenas, de nascidos e criados na zona para a periferia da cidade. Por seu lado, à medida que a actividade económica ia enfraquecendo, passando de milhares de trabalhadores assalariados para escassas centenas divididas acima de tudo entre o auto-emprego precário, proporcionalmente, todos os ramos de oferta iam enfraquecendo e, em consequência, tornando as ruas mais vazias. Não fora a classificação de Património Mundial pela UNESCO e o cenário ainda seria muito pior.
É normal falar hoje com conimbricenses que moram, por exemplo, na Solum e já não vêm à Baixa há mais de um ano. E não vêm porquê? Porque não têm necessidade. Na sua área de conforto residencial, desde comércio a pequenos serviços, existe tudo. E mais: não se preocupam com o custo de estacionamento. A meu ver, nos dias que correm, o pagamento de estacionamento transformou-se numa forte obstrução psicológica para que as pessoas venham à Baixa. Para desconstruir este preconceito em forma de estigma, nem que fosse temporariamente, por exemplo, era preciso que a edilidade anunciasse que o estacionamento público só seria onerado até até às 14h00. O resto do dia seria gratuito em todos locais destinados a automóveis, parques, praças e ruas. O que deixaria de ser cobrado, tendo em atenção o valor maior, que é a recuperação da Baixa, não valeria o esforço?
Então, pelas razões apontadas, sem pretender dar cabal explicação, dá para compreender os desabafos e clamores que as pessoas manifestam perante as muitas lojas encerradas e ruas vazias.
Vale a pena pensar nisto?

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