sábado, 23 de setembro de 2017

EDITORIAL: ESTE TEMPO EM QUE O HOMEM NÃO QUER MORRER PARA O MUNDO

(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)



Um novo mundo está em germe, um novo tipo de homem está em gestação. As massas, condenadas actualmente a sofrer mais do que em qualquer outra época, estão paralisadas pelo medo e pela apreensão. Como os seus traumatizados de guerra, as massas retiraram-se para os túmulos que para si próprios escavaram. Perderam todo o contacto com a realidade, excepto no que se refere às suas necessidades físicas. É evidente que o corpo deixou de ser há muito o templo do espírito. É assim que o homem morre para o mundo – e para o Criador. No decurso da desintegração, processo que pode prolongar-se por vários séculos, a vida perde todo o sentido. Uma actividade desenfreada, que se manifesta com igual ferocidade nos esforços dos académicos, dos pensadores, dos cientistas e nos actos dos militaristas, dos políticos e dos salteadores, oculta a presença cada vez mais ténue da chama viva. Esta actividade insólita é, ela própria, sinal de morte próxima.
(…) As nossas leis e costumes dizem respeito à vida social, à nossa vida em comum, que é o lado menor da existência. A verdadeira vida começa quando estamos sós, frente a frente com o nosso eu desconhecido. O que acontece quando nos encontramos com os outros é determinado pelos nossos solilóquios interiores. Os acontecimentos cruciais são verdadeiramente decisivos que marcam o nosso caminho são fruto do silêncio e da solidão. Costumamos dar grande importância aos encontros ocasionais, referi-los como pontos de viragem das nossas vidas, mas tais encontros nunca poderiam ter-se dado se não nos tivéssemos já preparados para eles. Se estivéssemos mais despertos, estes encontros fortuitos seriam ainda mais compensadores. Só em certos momentos imprevisíveis nos encontramos plenamente receptivos, plenamente disponíveis, por isso, em condições de receber os favores da sorte. O homem bem desperto sabe que todos os “acontecimentos” estão carregados de sentido. Sabe que não é só a sua vida a ser alterada, mas que todo o nosso mundo virá a ser igualmente afectado.”
Henry Miller, O Mundo do Sexo, 1940.

Socorri-me destes parágrafos do grande Henry Miller, escritos em 1940, para comparar esses tempos difíceis, com nuvens de guerra mundial onde a política pouco contava, com a actualidade onde por cá, pelo País, pela Península Ibérica, pela Europa, a política soçobra, fazendo submergir a lei e o direito, impondo-se como um espectro de lastro invisível de proveitos e sempre com a conveniência ideológica em pano de fundo social. Neste tempo de entendimento periclitante, cuja razão passou a ser uma contestação omnipresente, individual e subjectiva, em que as premissas “causa” e “efeito” se confundem e a segunda, justificando e abafando a primeira, perdendo toda a coerência, surge como verdade sem contestação, onde a paz, feita por guerreiros com metralhadoras em riste, nunca foi um princípio mas um subterfúgio para alcançar a guerra. Como espectadores fixados no desabrochar de um cataclismo, esperamos a todo o momento o eclodir de um grande conflito mundial encetado por duas super-potências mais interessadas no fabrico de armamento bélico do que assegurar a concórdia do planeta.
Por cá, a uma semana das eleições autárquicas, o ruído nas redes sociais é ensurdecedor. Não há escândalo no futebol nem plágio de um grande cantor que faça abafar o grito de que o meu candidato é melhor que o teu. Quer o concorrente ao cargo, quer o fanático apoiante, um que engana e outro que é enganado, previamente e com conhecimento mútuo, sabem que vão sofrer uma frustração no futuro. No entanto, como se a defesa da mentira constituísse uma afirmação de carácter, juram a pé-juntos a sua absoluta certeza. Pelo pugnar de promessas vazias insultarão tudo e todos quantos ousarem contradizer as suas afirmações convictas.
Por lá, aqui mesmo ao lado na vizinha Espanha, para muitos, nada importa o que se está a passar com a Comunidade Autónoma Catalã. Pouco interessa se o que está em causa é o direito, o cumprimento da carta constitucional e a unidade de uma nação -que por acaso, só por acaso, é nosso vizinho. E se fosse connosco? Para os defensores da realização do Referendo o que conta são os fins e não os meios, como quem diz, a política sobrepõe-se à lei. Acontece que um Estado de Direito detém mecanismos que, discutidos e aprovados num parlamento por uma maioria, simples ou de dois terços, podem alterar qualquer prerrogativa e, como neste caso da Catalunha, será ali que todos os anseios de unidade territorial ou maior auto-determinação terão de ser avaliados e aprovados.
Para não ser esquecido, recorrendo a todos os instrumentos possíveis e imaginários, o homem fará tudo para não morrer para o mundo. O Direito, o conjunto de normas de conduta para regular as relações sociais, que foi sempre a luz harmónica da justiça e da paz comummemente aceite para dirimir conflitos, já não serve para conter os interesses.

Sem comentários: