segunda-feira, 29 de junho de 2015

EDITORIAL: O DEFINHAMENTO DO COMÉRCIO TRADICIONAL






Neste último Sábado realizou-se mais uma “Noite Branca” promovida pela APBC, Agência para a Promoção da Baixa de Coimbra. Eu estive encerrado. Pelos vistos só menos de uma dúzia de lojas comerciais estiveram abertas. Embora já escrevesse bastantes crónicas sobre este assunto, parecendo que estou a desabafar para o boneco –por que mesmo que alguns leitores leiam, o seu efeito de influência é pouco mais do que nada. Confesso, nem será de admirar, até a mim me maça estar sempre a malhar no mesmo. Podemos interrogar, se me aborrece plasmar mais do mesmo, porque continuo e, mais uma vez, cá estou a bater em ferro frio? Volto a escrever porque há muita gente que, sem saber o que diz, sem ter qualquer conhecimento de causa, debita “soundbyte” como se fosse um “expert” na matéria. Bater nos comerciantes, culpá-los da destruição do comércio de rua, tornou-se um novo desporto nacional. Bate o funcionário público que, com um horário principesco e um salário garantido no fim do mês, de peito cheio acha que os vendedores são mandriões. Bate o cliente ocasional –o freguês fidelizado desapareceu-, porque há muito que abandonou a zona histórica e apenas volta, passados meses senão anos, pela saudade ou porque necessita de um produto que não encontra em mais lado algum. A ligação entre o consumidor e o comerciante, num esmifrar até ao tutano, está transfigurada em irregulares nos campos do abuso moral e ético. Se historicamente um comprador, numa relação bilateral, foi sempre a parte forte, aquele que tem o dinheiro, e o que está sempre à espera de perceber uma fragilidade do vendedor para se aproveitar e fazer baixar o preço, agora, o consumidor habitual do comércio tradicional, sabendo da debilidade do mercador, está transformado num “abutre”. Só não come o vendedor vivo porque é difícil. Bate o político local no comerciante, porque precisa de desviar a atenção para os seus erros cometidos e para que a responsabilidade que lhe cabe no extermínio da classe pelos sucessivos licenciamentos de grandes áreas comerciais e pelo abandono a que votou os centros históricos das cidades. Bate o governo nacional nos comerciantes através de sucessivos impostos de confisco, tratando uma pequena “chafarica” de igual modo a um grande empreendimento, o que leva a que uma pequeníssima actividade empresarial seja cada vez mais de substituição. Em substituição pelo desaparecimento brutal de estabelecimentos mais antigos, que passaram de definitivos a provisórios em experiências sucessivas de seis meses de duração; em substituição por o comércio se transformar em porto de confluência de todas as profissões mais díspares.
De salientar que entre todos os entes relacionais há um sentimento comum: uma profunda hipocrisia. Todos fingem que estão muito preocupados com o estado caótico e de empobrecimento do comerciante tradicional. O curioso, e isto até seria caso para estudo, é que o próprio operador comercial também faz de conta que está tudo bem. Mesmo sabendo que está entregue aos bichos, a uma sorte macaca, e que não tem nenhuma entidade que o defenda, e que a sua existência é cada vez mais a prazo curto, sorri com indolência de braços caídos e quando interrogado como está a sua vida comercial responde laconicamente que está tudo bem!

PROVOCAÇÃO OU DESCARTE?

É sabido que o conceito “Noites Brancas” –que consiste em prolongar os estabelecimentos abertos até à meia-noite- está esgotado. Na generalidade têm sido realizadas à sexta-feira e, salvo a das “Marchas Populares”, para os comerciantes não resulta economicamente e, por isso mesmo, não aderem à iniciativa. Na antepenúltima, que se realizou na sexta-feira de 24 de Abril, estiveram menos de uma dúzia de lojas abertas na Baixa. Pode interrogar-se: porque não aderem os comerciantes? Porque, tirando as noites das Marchas Populares, nas outras nunca vendem nada. Ora numa altura em que qualquer custo tem de ser avaliado, tudo faz mossa, esta é uma razão pela não adesão. Por outro lado, nos últimos anos, estas noites têm vindo a privilegiar a hotelaria.  É muito fácil dizer que os comerciantes não aderem às iniciativas, mas só quem está dentro da barraca sabe o que lá se passa.
Ora, se sabendo antecipadamente que as “Noites Brancas” produzidas à sexta-feira não funcionam, por que se persiste em fazer estas iniciativas ao Sábado? É preciso esclarecer que já anteriormente se experimentou e nunca teve sucesso. Volto a interrogar: por que se teima? Será para mostrar o lado menos participativo dos comerciantes e colocá-los na boca da opinião pública como os desinteressados de uma iniciativa inovadora? Ou seja, mostrar que têm uma entidade que se preocupa com a revitalização da Baixa e eles, homens de comércio, não querem saber?

E POR QUE NÃO QUEREM SABER?

Em analogia, o comerciante tradicional está para Portugal como os gregos estão para a Europa. No vulgo, são considerados anacrónicos, que não se conseguem adaptar aos novos tempos, e que habituados a um estatuto perdido querem continuar na mesma vida que sempre levaram. Se, de facto, há alguma coisa de verdade, tomar a amostra pelo todo é ver o Sol através da peneira. Os comerciantes de rua, atacados por todos os lados pelo poder político-partidário, governamental e local, que fizeram deles uma espécie de bombo da festa e o desprezou no respeito que lhe era devido e nos direitos de sobrevivência a que tinha direito –no abandono dos centros históricos e que levou à desertificação-, carregando-lhe em impostos e taxas e fazendo deles uma segunda versão do burro espanhol –que, para poupar na comida, se estatela ao comprido e, perante a estupefacção do interesseiro, morre silenciosamente.

OS COMERCIANTES VELHOS E OS OUTROS

Poderemos dividir os comerciantes em dois grupos: os velhos e os novos. Salvo poucas excepções, o comerciante velho é um ser amargurado e profundamente deprimido. Sem força anímica, perdeu a vontade de alterar seja o que for como, por exemplo, uma simples montra. Sem fé no presente, perdeu a esperança que move o homem em direção ao futuro e sente o seu definhamento a cada momento que passa. Como velhinho cansado pela marca do tempo, arrasta-se pelo decorrer das horas do dia e, sem conseguir pregar olho, num pesadelo indescritível, vira-se e revira-se pelo tique-taque das batidas do relógio durante a noite. Estes negociantes velhos, a trabalhar desde criança, vêem-se num momento de angústia sem precedentes. Muitos com idade avançada, alguns com funcionários com décadas ao serviço da firma e sem dinheiro para pagar indemnizações e, para piorar, presos a estoques cujo Estado lhes exige a devolução do IVA pago e descontado na altura da compra do produto, estão presos numa armadilha sem saída possível e em que só lhes restam dois caminhos: a insolvência particular e da empresa ou o suicídio. O resultado do trabalho de uma vida, as poupanças, o prédio comprado a prestações de suor e lágrimas, vêem ir tudo embora, “vendado” por “tuta e meia”, por água abaixo.
Os comerciantes novos, trazidos pelos ventos do desemprego, pela moda do empreendedorismo, carregados de um aventureirismo próprio de quem entra numa profissão sem conhecimento e prenhe de um optimismo exacerbado e sem limites, chegados ao pragmatismo da realidade, depressa estão a culpar as estrelas da sua má-opção. Mergulhados na massa disforme da excessiva oferta, só então se apercebem que qualquer projecto, comercial, industrial ou de prestação de serviços, só vinga ou sobrevive pela carência do consumidor a que se destina. Nestes tempos esquisitos, não bastam sonhos cor-de-rosa, conceitos especiais de missões que visam transformar o mundo dos negócios. Se por um lado não está tudo inventado, por outro, o que surge na comunicação social é tudo demasiadamente empolado numa aura de positivismo infantil. O resultado do arriscar, do entrar de cabeça num aparente lago sereno, onde tudo parecia tão fácil, é o sair endividado até às orelhas, carcomido pela culpa e inevitável irresponsabilidade que vai ter consequências no destino de cada um.


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