segunda-feira, 24 de julho de 2017

COMÉRCIO: APLICAR SORO FISIOLÓGICO AO DOENTE COMATOSO

(Imagem de Leonardo Braga Pinheiro)




Neste último Sábado, a Câmara Municipal da Mealhada, sob o lema “Comércio em Festa”, levou a efeito um desfile de moda, “em que eram apresentadas as grandes propostas das lojas da cidade”, e abrilhantado com música ao vivo de DJ's contratados. Seguindo o exemplo de anos anteriores (creio), e a prossecução, em imitação, do que se faz pelo país de Norte a Sul sobe o mote de “Noite Branca”, a ideia seria manter os estabelecimentos comerciais abertos até à meia-noite e, para além disso, “um sorteio de vales de desconto num valor acumulado superior a 500 euros” -in Diário de Coimbra.
Cerca das 21h30, tanto quanto me apercebi, na principal artéria da cidade bairradina, para além de alguns cafés, havia três lojas comerciais abertas, sendo que duas pertenciam ao mesmo proprietário. Transeuntes a circular nas ruas contavam-se pelos dedos. No entanto, saliente-se, no fim do espectáculo de moda realizado na Quinta da Nora deu para ver que largas dezenas de pessoas assistiram e depois de concluída a mostra recolheram directamente às suas casas sem sequer se preocuparem em visitar os poucos comerciantes “resistentes” que seguiram o programa anunciado.
Num dos espaços comerciais abertos, em cuja montra poderia ler-se “leve dois e pague um”, troquei algumas impressões com o lojista. Pela longa conversa, facilmente percebi que o que se passa com o comércio tradicional em Coimbra, cidade média de cerca de cem mil habitantes, é igual à Mealhada, urbe com pouco mais de vinte mil. Lá como cá, o comércio de rua arrasta-se pelas pedras da calçada sem que, por parte do poder político, se vislumbrem soluções honestas de salvação que possam pôr fim à sangria que inevitavelmente levará ao desaparecimento destes espaços tão populares e necessários a todos os lugares habitados. Na Mealhada como em Coimbra, a solução apresentada de recorrer à festa nos centros das cidades e chamando os comerciantes a estarem abertos visa essencialmente dois objectivos:
Primeiro, mostrar aos consumidores em geral, enquanto massa abstracta que vota e que não está ligada ao comércio de rua, que os “senhores feudais” (o poder político local instituído) estão muito preocupados com a desertificação e a notória queda abrupta nas vendas. E por isso mesmo promovem iniciativas que, aparentemente, têm por objecto revitalizar os centros urbanos. Ficam muito bem na fotografia e o povo, acrítico, sem pensamento de análise e que adora circo, bate palmas.
Segundo, como os comerciantes não aderem a estas festarolas, porque há muito se aperceberam do que daí advém, a intenção é passar o ónus da responsabilidade de decrepitude destas zonas para os que lá exercem as suas profissões de compra e venda. Paulatinamente, como um enorme toro de madeira numa lareira, os mercadores, sem destrinça entre velhos e novos e indiciados como causadores da falência vivificante dos centros, vão sendo queimados em lume brando pela opinião pública.
É óbvio que, na primeira premissa, estes políticos estão fartos de saber que o comércio local caiu nas ruas da amargura muito por culpa do licenciamento desbragado e falta de planeamento urbanístico da oferta nas actividades existentes. A desculpa para se continuar a falar em urbanismo comercial e não se fazer nada para a sua implantação, num preceito constitucional que dá jeito assente na liberdade de investimento, reporta-se para Constituição da República e para as directivas emanadas de Bruxelas, em que o que importa é a concorrência sem regulação. Quanto mais oferta selvagem houver maior será a destruição na pequena e pequeníssima empresa. Não é preciso ser presciente para adivinhar que a médio-prazo esta anomia, perdas de identidade, de objectivos e de regras, vai conduzir ao caos, em que o desequilíbrio vai imperar pela transformação de tudo em hotelaria -até ao dia em que este sector rebentará também como bolha de água inflaccionada.
É também claro que, na segunda premissa, os eleitos condutores das cidades estão fartos de saber que os comerciantes não aderem porque estas acções festivaleiras não trazem absolutamente nada de positivo para os lojistas. Pelo contrário, pela despesa em cima de despesa, sem que se vislumbrem melhorias, é extremamente negativo. Utilizando-os como arlequins do reino, sem um pingo de vergonha, faz-se deles actores gratuitos de um teatro trágico-cómico.
Tal como se verificou neste último Sábado na Mealhada, e igualmente em Coimbra, as pessoas são atraídas apenas pela alegoria e poucos e raramente vão para comprar nessa noite. É assim uma espécie de ida à romaria do Santo Amaro.
Neste cortejo à Senhora das Aflições, todos fingem. Começa no comerciante que, sentindo que o negócio é cada vez mais a conta-gotas e a cair dia-após dia, finge que está tudo bem -a não adesão a estes movimentos circenses é o único protesto silencioso que se conhece. Fingem os grupos parlamentares com assento na Assembleia da República, fingem os políticos governamentais, fingem os eleitos locais, fingem os candidatos às eleições autárquicas -em Coimbra todos os novos concursantes, nos seus programas eleitorais, falam em “requalificar” a Baixa. A questão é saber interpretar a palavra “requalificar” para além de ser uma bandeirola política que serve para tudo menos para ser objectiva.
Só para ser mais claro, de dois em dois anos, normalmente sob a sigla “Comércio Invest”, com promessas de um “eldorado”, lá vem subsídios propalados e, na subsequência, o convite e aceitamento para a forca. Este ano, para variar e alargar os créditos às autarquias, inserido no âmbito do Quadro Comunitário 2020-2020, foi apresentado o “Coimbra Invest”. Numa animada marcha fúnebre comercial, para ser contemplado, exige-se que tenham de ser criados postos de trabalho e, para o seu preenchimento, de recorrer aos centros de emprego. Facilmente se adivinha que num sector que agoniza, como é lógico, esta não será a solução viável para a sua recuperação.

NÓS POR CÁ TUDO BEM...

Em Coimbra, quando o comércio de rua apresenta sinais evidentes de esgotamento colectivo na Baixa, e em que os comerciantes não aderem ao alargamento de horário nas chamadas “Noites Brancas” e pelo contrário estão a abrir mais tarde e a encerrar as suas lojas mais cedo – para além de alguns já não estarem cá ao Sábado, nos outros dias, abrem por volta das 9h30 e encerram por volta das 18h00-, o executivo municipal continua a apostar na torrefacção de mais uns milhares de euros para festas populares em nome do Santo Onofre, protector dos comerciantes.
Depois de ter financiado há poucos meses com a verba de 35 mil euros, segundo o Diário de Coimbra de hoje, desta vez o “Município apoia Agência de Promoção da Baixa” com 55 mil euros. “A autarquia reconhece que a APBC tem aumentado, com qualidade, as dinâmicas de actuação e que pretende dar continuidade ao projecto, que contempla a concretização de iniciativas de carácter estruturante, de promoção e modernização da zona da Baixa de Coimbra. A sua acção e foco têm vindo a incidir em actividades que atraiam o maior número de pessoas à Baixa de Coimbra e, em 2016, houve uma considerável aposta na formação e sensibilização dos comerciantes, em acções de responsabilidade social, na captação de investidores e na promoção de concursos de empreendedorismo”.
Não há nada com cair em graça! Quando se precisa de justificar o injustificável até se inventam desempenhos e conceitos. Entretanto, os castelos vão caindo, mas não há problema porque a banda continua a tocar. Ah, grande Manuel Machado! O que seria da Baixa sem você?!?

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